Ayurveda: a ciência da longa vida e de longa data
- 22 de dezembro de 2020
Um dos mais antigos sistemas médicos
tradicionais do mundo destaca-se por sua eficiência na preservação da saúde, no
cuidado e tratamento de diversas doenças físicas e mentais. O Ayurveda,
medicina de origem indiana reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS),
aplicado atualmente em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, apresenta
resultados exitosos, face ao olhar individualizado que tem sobre cada pessoa e
sua constituição.
Redação: Katia Machado
Revisão: Caio Portella, Ricardo Ghelman,
Nina C. B da Silva
No dia 13 de novembro de 2020, comemorou-se
o Dia Internacional do Ayurveda, em homenagem ao Deus da Medicina Dhanwantari, na mitologia hindu. Traduzido como “Ciência da
Vida”, o Ayurveda é uma medicina tradicional indiana que remonta mais de cinco
mil anos, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma medicina
de estilo de vida e um sistema capaz de prevenir e tratar doenças.
“As terapias
ayurvédicas estão baseadas em três pilares básicos, que incluem cuidados
alimentares, qualidade do sono e prática de rotinas diárias voltadas para a
autoconsciência e a auto-observação, baseadas em técnicas de meditação,
exercícios físicos e respiratórios, além de contar com a aplicação corporal de
óleos e uso de plantas medicinais e minerais com eficácia e segurança clínica
comprovadas cientificamente”
Detalha a professora da Faculdade de
Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com formação em
Ayurveda no Brasil e na Índia, Nina Claudia Barboza da Silva. Este sistema
medicinal busca a longevidade da vida através do equilíbrio físico, mental e
espiritual.
“Ele tem dois
objetivos: preservar a saúde de quem está saudável e curar quem está doente”
Acrescenta a naturóloga e pesquisadora,
formada na Índia, Margarete Mota.
A Política Nacional de Práticas Integrativas
e Complementares (PNPIC) do Ministério da Saúde, incluindo a Ayurveda no SUS em
2017, reforça que os tratamentos ayurvédicos são únicos e considera que a
doença se inicia muito antes de ser percebida no corpo, aumentando o papel
preventivo deste sistema terapêutico, tornando possível tomar medidas adequadas
e eficazes com antecedência(1).
A cosmovisão ayurveda baseia-se na teoria
dos cinco elementos do universo: éter/espaço (Akasha), ar (Vayu), fogo (Agni),
água (Apas) e terra (Prittivi). Estes elementos são categorias qualitativas,
que permitem classificar as características de qualquer fenômeno no universo e
no paciente a partir da sua própria percepção. Como exemplo, o éter se
relaciona com a noção de espaço, de vazio. O ar diz respeito às ideias, aos
reflexos, ao movimento e à capacidade de mudar rapidamente, remetendo às
emoções e sentimentos. O fogo remete à capacidade de processar e digerir (de
alimentos a emoções), à criatividade, à capacidade de construir e reconstruir.
A água, segundo o conhecimento hindu, diz respeito ao livre fluir das emoções,
da alegria, gerando “jogo de cintura”. A terra, por sua vez, expressa
estrutura, aterramento, prudência, objetividade e, portanto, memória e saúde
física. O diagnóstico destes elementos no paciente norteia o processo
terapêutico ayurvédico.
Na Ayurveda, a combinação dos elementos se
dá em pares, formando o conceito de Doshas, que
podem, na explicação de Nina, ser entendidos como unidades fisiológicas que
coordenam o funcionamento do corpo humano.
“Considerando apenas
os doshas do corpo, temos: o ar e o espaço, que
formam o Vata; o fogo e a água, o Pitta; a água e a terra, o Kapha”,
Segundo também Margarete Mota, cada um de
nós temos uma proporção de doshas, o que permite um diagnóstico constitucional
do paciente (prakriti), e uma orientação alimentar, de estilo de vida e
terapêutico.
“Quando estamos com
o vata equilibrado, adquirimos equilíbrio nos
sistemas nervoso e linfático. Quando este, ao contrário, está desequilibrado, é
sinal de que estamos estressados, ansiosos, com dificuldade para dormir, com
insônia, prisão de ventre, podendo provocar problemas reumatológicos. As
doenças crônicas degenerativas resultam, por exemplo, da degeneração do vata”
Segundo a literatura ayurvédica, o pitta é
responsável pela organização da digestão, do sistema cardiovascular, das trocas
gasosas nos pulmões e da atividade enzimática nas células. O pitta ainda é
responsável pela digestão das emoções em nossa mente.
“Quando em
desequilíbrio, exalta a raiva, a intolerância, a impaciência, provoca
distúrbios sexuais, neuroses, problemas gástricos, dermatológicos e
cardiovasculares. Já o kapha é responsável pela estrutura física e, portanto,
pelos tecidos ósseo e muscular. Esse dosha influencia nosso sistema
imunológico, nos protegendo de certos adoecimentos e do desgaste dos tecidos,
quando em equilíbrio. Se desequilibrado, provoca desânimo, tristeza e depressão
e leva à obesidade e a diabetes”
Constatações científicas do ayurveda
O sistema médico tradicional da Índia tem
sido estudado pela ciência contemporânea de muitas formas. Em artigo sobre a
recapitulação dos tipos de constituição de Ayurveda segundo traços fenotípicos,
os pesquisadores encontraram três categorias analíticas correspondentes aos
três doshas(2).
Adaptado de TIWARI, et. al, 2017. Representação visual do
processo de interpretação do Prakriti com base em referências textuais
originais e cluster de categorias dos doshas analisados.
Nesta pesquisa, a interpretação do prakriti
(constituição básica individual) é baseada na ocorrência combinatória de
características fenotípicas que são capturadas através do questionário. De
acordo com o estudo, se o tipo de pele é fino, poderia ser devido ao vata ou ao
pitta. Porém se, também, é seco e áspero, seria interpretado como tipo vata,
enquanto, se é oleoso e solto ou macio, seria considerado como tipo pitta. Da
mesma forma que, se alguém tem um problema de saúde, no frio, poderia ser do
tipo vata ou kapha. “Uma vez que a umidade pode segregar a pessoa ainda mais, o
problema de saúde, no frio úmido, poderá ser do tipo kapha, enquanto, no frio e
seco, seria do tipo vata”, detalha a pesquisa. Estes resultados reforçam o
conceito de integração de fenótipos, baseados no prakriti, para estratificação
de risco de indivíduos saudáveis, e fornecem indicadores para desenvolver
estratégias de prevenção.
A correlação das classificações do Ayurveda
em relação ao biotipo constitucional aparece, ainda, em estudos sobre
microbioma, correlacionando os tipos de bactérias com características do
prakriti. Outro relatório científico, publicado na Revista Nature, revela por sua vez a correspondência das
características da leitura biotipológica do ayurveda com a genética(3).
Estas classificações podem ser utilizadas em
saúde mental, como demonstra um estudo de autores da Universidade da Califórnia
e Harvard, concluindo que a avaliação baseada em doshas, no ayurveda, pode ser
uma maneira eficaz de avaliar o bem-estar físico e emocional em ambientes de
pesquisa e clínicos(4). O estudo sobre as relações entre os
diagnósticos da medicina ayurvédica para desequilíbrios e as medidas ocidentais
de estados psicológicos(5) revela que o desequilíbrio de vata, por
exemplo, está associado a mais ansiedade e ruminação, menos atenção plena e
menor qualidade de vida em geral. O desequilíbrio do pitta tem relação com pior
humor, menos atenção, mais ansiedade e estresse, respectivamente. Já o
desequilíbrio de kapha está associado a mais estresse, mais ruminação e menos
capacidade de reflexão. Os pesquisadores, por meio de questionários aplicados
com cerca de cem adultos, com uma média de 59 anos, concluíram que os sintomas de
desequilíbrios mente-corpo no Ayurveda estão diferencialmente associados às
avaliações ocidentais de estados psicológicos.
Na mesma área da saúde mental, estudos
mostram que muitas plantas ayurvédicas possuem propriedades significativas para
o tratamento do stress, depressão e ansiedade, como, por exemplo, o medicamento
tradicional Ashwagandha,
feito a partir da planta Withania somnifera. O pesquisador e naturólogo Caio Portella,
vice-presidente do Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa
(CABSIN), conta que diversos estudos de revisão sistemática têm demonstrado
efeitos significativos sobre estes indicadores(6).
O sistema nervoso foi, também, pesquisado à
luz do dosha vata. Estudo conduzido pelos pesquisadores Venil Sumantran, do
Instituto de Pesquisa e Educação da Universidade Deemed, na Índia, e Pratibha
Nair, do Instituto Nacional de Pesquisa Ayurveda para Panchakarma, do
Ministério indiano AYUSH – acrônimo de Ayurveda, Unani, Siddha e Homeopatia –,
levanta questões provocativas para identificar os sistemas fisiológicos
subjacentes ao dosha vata e biomarcadores candidatos para a atividade Vata(7).
“Explicamos as fortes correlações entre a sobrevivência e as funções
homeostáticas do nervo vago, maior nervo craniano, bem como as funções
governadas pelos cinco principais subtipos do dosha vata (Praana, Udana,
Vyaana, Samaana e Apana)”, escrevem os pesquisadores.
Há quatro razões que sustentam a hipótese de
que a atividade vagal é um biomarcador confiável de importantes funções do
dosha vata, como afirma o trabalho. “A primeira razão diz respeito ao fato de o
vata e o nervo vago terem funções semelhantes, de manter a homeostase
(equilíbrio interno) neural, respiratória e digestiva. Além disso, as
disfunções dos dois causam doenças muito semelhantes. A segunda razão remete ao
fato de o vata regular funções neurais superiores, como saúde mental e
comportamento, e por que a “teoria polivagal” propõe funções semelhantes para o
vago. Em terceiro lugar, os papéis semelhantes entre o vata e o nervo vago na
manutenção da homeostase intestinal sugerem que a atividade vagal na ligação
‘intestino-cérebro’ é um biomarcador candidato de pakwashaya (intestino
inferior), um regulador primário para o dosha. E, por fim, o vago é o único
nervo vital cuja atividade pode ser medida com segurança e manipulado”,
justificam. Os pesquisadores salientam, ainda, que a estimulação do nervo vagal
é uma terapia aprovada pelo FDA, agência federal do Departamento de Saúde e
Serviços Humanos dos Estados Unidos, para doenças atribuídas ao desequilíbrio
do dosha vata, como ansiedade excessiva, doenças do sistema nervoso e
osteoarticulares.
Ayurveda à luz da ciência
Nina realça que, apesar da história milenar,
registrada e sistematizada em diferentes fontes, muitos afirmam não haver
evidências que comprovem a eficácia e a segurança do uso das práticas do
Ayurveda, em especial daquelas que envolvem o uso de plantas medicinais.
“As evidências
exigidas pela ciência moderna são referentes às terapias corporais e
medicamentos ayurvédicos, sendo considerada necessária a realização de ensaios
clínicos randomizados, envolvendo seres humanos. Entretanto, a crença de que o
Ayurveda carece de evidências é incorreta”
A professorara e,
também, pesquisadora deste campo do conhecimento científico, revela que há mais
de seis mil artigos no PubMed – motor de busca de livre acesso à base de dados
MEDLINE, de citações e resumos de artigos de investigação em biomedicina –, tendo
‘Ayurveda’ como palavra-chave. “Os autores de um artigo, que questiona uma
‘aparente falta de evidências’, afirmam que tais evidências não são facilmente
acessíveis, devido à incapacidade de pesquisar em outras fontes de publicações,
como teses, livros, monografias etc., fazendo crer que existam poucos – ou
nenhum – dados e, por consequência, na ausência de evidências”
Realça, em alusão ao artigo que tem como
título ‘Ayurveda:
(W) Here is the evidence’(8). Ela sugere que é necessário compilar e
consolidar esses dados, produzir um mapa com as evidências existentes e,
também, apontar as áreas que necessitam de mais pesquisas. Em sua avaliação, um
mapeamento sobre o Ayurveda, validado pela ciência moderna, poderá alcançar
aceitação global, incorporando o que há de melhor, tanto em relação à prática
clínica quanto à produção de medicamentos, sem comprometer os padrões
tradicionais.
Ayurveda e Covid-19
Por ocasião do Dia Internacional do
Ayurveda, foi lançado o e-book “Ayurveda e
Covid-19: Consolidado de Guias e Protocolos produzidos pelo Ministério AYUSH“.
O livro, nas versões em português e espanhol, foi produzido pelo Consórcio
Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (CABSIN), em parceria com o
Ministério AYUSH e a Fundação de Saúde Ayurveda Prema da Argentina. Durante o
lançamento, promovido na Webinar da Rede MTCI Américas, realizada no dia 13 de
novembro, foi anunciada a criação do Comitê de Ayurveda do CABSIN, sob a
coordenação da pesquisadora Nina Claudia Barboza da Silva e do professor Jorge
Berra, reunindo diversos pesquisadores da América Latina.
Referências
1.
BRASIL. Portaria nº
849, de 27 de março de 2017. Ministério da Saúde.
Fonte:
https://cabsin.org.br/ayurveda-a-ciencia-da-longa-vida-e-de-longa-data/
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