
Ciência de verdade passa longe de "feira quântica"
A física
quântica é uma área da física em pleno desenvolvimento desde o início do século
20. Graças a ela, a ciência e a engenharia vêm desenvolvendo uma série de novas
tecnologias em várias áreas do conhecimento. Na área da saúde não é diferente:
hoje fazemos exames PET Scan e Ressonância Magnética
Nuclear graças aos avanços no entendimento de como as partículas
elementares se comportam e interagem. Tratamentos com radioterapia, para o
câncer, melhoram as condições de saúde de pacientes no mundo inteiro também
graças à física quântica: a física do “muito pequeno”, da estrutura da matéria.
Como físico,
cientista e curioso que sou, estou interessado em aprender as novidades dos
avanços da ciência. No final de semana de 23 e 24 de novembro, ocorreu o I Congresso
Catarinense de Saúde Quântica, na cidade de Florianópolis, SC. Eu
fui enviado pelo Instituto Questão de Ciência (IQC) para participar do evento
como ouvinte, e depois relatar aqui na Revista os avanços apresentados. Nessa
primeira missão como infiltrado pelo IQC, eu adoraria relatar os avanços
científicos apresentados nesse Congresso, mas não posso. O que encontrei foi
um show de horrores da física, onde termos da mecânica quântica
foram usados fora de contexto e, ainda, distorcidos na tentativa de trazer
validação científica para ideias pseudocientíficas na área da saúde: a tal da
“saúde quântica”.
Já na mesa de
abertura do evento, uma surpresa desagradável: os organizadores do Congresso
foram apresentados como pioneiros do conhecimento quântico. Ora, pensei eu, o
que fizeram com os estudos de Planck, Bohr, Schrödinger, Dirac, Einstein e De
Broglie? Será que eu estava com a expectativa alta demais? Talvez. Afinal, a
própria pastinha que recebemos no credenciamento já vinha com a foto do médico
Deepak Chopra estampada. Era um prelúdio dos absurdos que se seguiram ao longo
dos dois dias: junto com citações de Chopra, figuraram também como grandes
gurus os nomes dos físicos (ou seriam místicos?) Amit Goswami e Fritjof Capra.
Todos eles são, ao invés de gurus científicos, grandes exemplos, dentro da
física, de como não devem ser usadas as ideias advindas da
física quântica.
Marcelo
Yamashita já trouxe à Revista Questão de Ciência uma
argumentação anterior alertando sobre as falcatruas com terapias quânticas. Carlos Orsi
também já alertou na revista sobre usos indevidos da física quântica aqui e aqui. Deixo ainda uma tese de
doutorado de Sandro Machado analisando a argumentação desses gurus místicos citados
anteriormente.
Show de horrores
Como descrevi,
existe bastante física quântica na área da saúde. Seria ótimo se “saúde
quântica” tratasse dessas aplicações, mas não é o caso. Não ouvi falar nem em
exames avançados de diagnóstico por imagem, nem em como melhorar os parâmetros
do feixe de radiação da radioterapia. Curiosamente, “saúde quântica” não trata
das aplicações corretas e devidas da física quântica na saúde, mas algo bem
distinto... Vou explicar baseado nas duas ideias principais que apareceram de
forma recorrente nas palestras do evento: a saúde quântica é baseada em
“frequência e vibração” para saúde e doença. Assim, uma pessoa saudável possui
suas células e órgãos vibrando na frequência adequada. Além disso, a condição
de saúde ou de doença pode ser criada pelo próprio paciente, uma vez que “temos
o poder de alterar/criar nossa realidade”.
Agora, quero
mostrar a você que essas duas afirmações básicas, de onde se sustenta a tal
saúde quântica, não passam de uso indevido de fenômenos científicos, e
corretos, descritos pela física quântica. Assim, vou tentar explicar brevemente
a parte científica correta da física quântica sobre esses fenômenos, depois
mostrar como eles são usados na geração de afirmações pseudocientíficas e, por
fim, comentar o porquê dessas afirmações não serem validadas pela ciência. Meu
objetivo é mostrar como o conhecimento científico é, de fato, distorcido para
tentar convencer o leigo sobre a cientificidade das ideias pseudocientíficas:
“Frequência e
vibração”
Breve
conhecimento científico: hoje
sabemos, a partir da Mecânica Quântica, que mesmo partículas elementares,
antigamente pensadas apenas como “pequenas bolinhas”, também apresentam
comportamento ondulatório. Ou seja, existe um comprimento de onda (e, portanto,
uma frequência) que pode ser associado às partículas. Isso gera o que se chama
de “dualidade”: as partículas podem se comportar como pequenas bolinhas, mas
também podem se comportar como ondas, dependendo da forma como interagimos com
elas.
Afirmações
pseudocientíficas: esse
fenômeno é usado para tentar justificar a ideia de que órgãos, células, saúde e
doença também possuem “frequências”. Aqueles indivíduos que conseguem fazer seu
corpo vibrar adequadamente, formando uma espécie de “sinfonia da saúde”,
estarão livres das doenças. Para citar um exemplo, um dos médicos palestrantes
do evento chega a dizer que aquilo que aprendeu sobre bioquímica na faculdade
de Medicina, em relação aos mecanismos de ataque aos invasores do nosso
organismo e processo de defesa do sistema imune, é besteira. Segundo ele, a
explicação correta é uma questão quântica “frequencial”: um agente invasor
emite uma frequência que as células de defesa rastreiam, como mísseis guiados
para o combate.
Problema na
argumentação: um leigo
pode entrar nessa, crente que está aprendendo algo científico. Mas fique
alerta. O problema da argumentação está numa característica que os charlatães
devem “acabar esquecendo” de contar ao público: quanto maior o tamanho do
objeto, mais insignificante o caráter ondulatório que ele
apresenta. Assim, células (milhares de vezes maiores que um átomo), órgãos
humanos e o próprio corpo humano, para qualquer fim prático, se comportam de
forma muito melhor descrita por partículas sólidas do que como ondas
oscilantes. Além disso, em ciência, quando falamos em frequência, sempre
dizemos claramente qual o mecanismo que a gera, e também como podemos medi-la
em laboratório. Na saúde quântica, essas frequências são usadas apenas como
recurso de linguagem. No Congresso, em nenhum momento foi apresentada uma forma
de medir e caracterizar um espectro dessas frequências.
“O poder do
observador”
Breve
conhecimento científico: mais
um uso indevido de física quântica. Esse vem de um fenômeno difícil de explicar
em poucas palavras, mas, tentando colocar da forma mais simples possível,
funciona assim: o estado de um sistema quântico não é bem determinado enquanto
não se faz uma medida. Dessa forma, quando uma medida é feita, esse processo
interage com o sistema e acaba fazendo o que se chama, tecnicamente, de
“colapso da função de onda”. Como consequência, o estado do sistema passa a ser
bem determinado. Uma analogia: pense em uma moeda. Depois de lançá-la pra cima
e segurá-la com a mão fechada, podemos afirmar que ela está com seu “estado”
bem determinado dentro da mão (ou seja, ela está ou com “cara” ou “coroa” para
cima).
Ao abrirmos a
mão, podemos apenas conhecer o resultado do lançamento da moeda. Agora, se a
moeda fosse um sistema submicroscópico quântico com dois estados possíveis
(“cara” ou “coroa”), após lançá-la para cima e pegar com a mão fechada, não
podemos afirmar que o estado dela é bem determinado. Tecnicamente, dizemos que
a moeda fica em uma “sobreposição de estados”. É somente no momento que abrimos
a “mão quântica” (ou seja, usamos um aparato experimental para medir o estado
da moeda) que o estado dela passa a ser, imediatamente, ou “cara” ou “coroa”.
Afirmações pseudocientíficas: esse fenômeno é chamado,
principalmente pelos charlatães, de “o papel ou o poder do observador”. O que
eles querem que você pense é o seguinte: da mesma forma que o estado quântico
só se determina quando uma medida é feita, então nós, como responsáveis por
“medir a nossa realidade” a todos instantes, também temos o poder de escolher
aquilo que vivemos. Assim, somos responsáveis por nossa cura e nossa doença.
Nosso sucesso e nosso fracasso. Nesse sentido, um dos palestrantes de domingo,
outro médico, foi decisivo ao afirmar que é o pensamento que
cura. Outro exemplo evidente apareceu na última palestra do sábado,
quando um iridologista usou praticamente todo o tempo da sua explanação para
contar ao público como conseguiu acessar o “campo quântico” através da sua
consciência e, com isso, o universo o presenteou com uma melhora na condição de
vida.
Segundo ele,
graças a esse acesso quântico, hoje dirige um BMW e tem um
apartamento de frente para o mar, em Florianópolis. O público se emocionou
bastante com a história. Parece que a lição foi realmente compreendida pelos
presentes, pois, no final do Congresso, domingo, houve sorteio de brindes. Uma
senhora, que ganhou a pulseira mais cobiçada pelos congressistas (pulseira de
exercícios que mede batimentos cardíacos, número de passos, estado de sono e
ainda conecta com aplicativo no celular) pegou o microfone e disse que acabara
de ser sorteada por, também, ter conseguido pedir adequadamente ao universo. O
público aplaudiu esse feito maravilhoso. O que eu não deixo de me perguntar é
quantos mais ali, sentados, também não pediram ao universo, e ouviram um “não”,
Problema na
argumentação: o
principal “engano” dos charlatães ao citar esse fenômeno é que o observador (ou
seja, o agente que realiza a medida do sistema quântico) não tem nenhuma
condição de escolher o resultado da medida. Na nossa analogia
da moeda quântica de dois estados igualmente prováveis, cada vez que uma medida
for feita na moeda, inicialmente em uma sobreposição dos dois estados, o resultado
obtido será ora “cara” e ora “coroa”, ao acaso. Por mais que o experimentador
(ou observador) tenha diante de si diversas moedas idênticas em sobreposição de
estados e passe a medir uma por uma, independentemente da sua vontade,
mentalização ou pedido ao universo para obter o resultado “cara”, isso somente
acontecerá, aproximadamente, em 50% das moedas.
Destaco que se
“o papel do observador” fosse usado apenas como uma analogia, eu até não me
incomodaria tanto. Afinal, dedicação, alegria e motivação são importantes na
tentativa de conseguir resultados melhores na vida amorosa, financeira e até na
saúde, mas isso não tem nada a ver com física quântica. Afirmar que o
paciente escolhe ser pobre e doente por não conseguir
mentalizar adequadamente, e não acessar o campo quântico, chega a ser perverso.
Florais
quânticos
Um dos médicos
palestrantes disse ainda que a medicina quântica não é feita para tratar a
patologia, mas para tratar o processo que ocorre no corpo para gerar a
patologia. E, como você já pode imaginar pelo explanado anteriormente, o que
ocorre é um desequilíbrio energético e “frequencial” entre órgãos e células. É
nesse sentido que aparecem os florais vibracionais quânticos (ou também
chamados de IFF – Indutores Frequenciais Florais): ao longo de todo o
Congresso, eles foram o foco de todos os palestrantes. A alegação principal é a
de que esses produtos são soluções biofísicas elaboradas com o propósito de
“reequilibrar as energias”, ou ainda, afinar as frequências de órgãos e células
para o estado de saúde.
Na página do
Congresso, a médica e palestrante (carinhosamente chamada pelos
congressistas de “A Dama dos Quânticos”) Rosangela Arnt comenta sobre a
eficiência do produto para a cura (mencionamos esta palestrante pelo nome
porque ela deixou um depoimento registrado por escrito, cujo conteúdo pode ser
corroborado de modo independente):
Elas [essências
vibracionais florais do Sistema Floral de Ação Quântica] são, a meu ver,
o sistema de harmonização da autocura mais simples de usarmos
e aprendermos a sugerir para os pacientes e clientes. São moduladores e
indutores frequenciais, que usam a mesma ideia da ressonância para
transferência de informação, modulando os campos de energia dos órgãos
e sistemas, aumentando a biorreceptividade celular para nutrição das
células, e equilibrando as funções em geral. (grifo nosso).
Veja que a
explicação dela vai ao encontro da ideia das frequências dos órgãos e sistemas,
e ainda faz surgir um palavreado clássico das pseudociências: “campos de
energia”. De novo, esse termo é lançado como expectativa de fazer parecer
ciência, mas esquecem que cada vez que a ciência se refere à “energia” em algum
sistema, essa forma de energia é bem determinada, pode ser calculada e ainda
pode ser medida. Aqui, na saúde quântica, energia é simplesmente um termo
carente de qualquer sentido e significado. Eventualmente, chamam de “energia
vital”, “chi”, e coisas do tipo. Lamento informar que chamar algo de “energia”
não é suficiente, cientificamente, para que esse algo seja imediatamente
comprovado. O artigo do Marcelo Yamashita e outro do Carlos Orsi, ambos da Revista Questão de
Ciência, já discutiram anteriormente essa questão.
A página
do fabricante desses florais quânticos, por sua vez, não
colabora em nada na compreensão do seu mecanismo de ação. Veja o que eles
apresentam:
Os Frequenciais
Florais atuam por um princípio Biofísico. A ação ocorre por ressonância
vibratória e magnética, agindo assim no corpo físico através da
vibração do corpo energético. Têm como propriedade atuar promovendo o
equilíbrio. Também agem alinhando os Chakras, dissolvendo bloqueios,
facilitando a abertura e modulando a entrada de energia no organismo [...].
Os Frequenciais Florais e os Suplementos não são medicamentos e não
possuem princípios ativos. (grifo nosso).
Novamente, além
do termo “energia” aparecer sem qualquer significado prático, o fabricante
alega não haver princípio ativo na solução vendida. Isso está de acordo com o
que os palestrantes comentavam no evento. Outro médico chegou a sugerir aos
congressistas que eles podem prescrever a quantidade que quiserem de florais
quânticos aos pacientes, pois, por não possuírem princípio ativo, nas palavras
dele, “ninguém vai encher o saco”.
Houve um
palestrante que tentou elaborar melhor a explanação sobre como funcionam esses
frequenciais florais. Ele usou a analogia com um relógio atômico: da mesma
forma que o relógio atômico é baseado nas frequências de emissão do átomo de
césio, e ninguém duvida que exista uma frequência de vibração associada ao
césio, então esses florais carregam apenas as frequências vibracionais do
agente biológico de interesse (como a frequência de um hormônio, por exemplo).
Apesar de ser
ótimo argumentar assim, baseado em analogias, há uma diferença crucial na
frequência do átomo de césio do relógio atômico e a frequência vibracional do
rim, ou do coração, ou da saúde, ou de determinado hormônio: no césio,
conseguimos montar um experimento que o excite energeticamente e, depois,
medimos as frequências emitidas. Uma molécula grande possui, por sua vez,
várias frequências que podem ser medidas por espectroscopia (e todas dependem,
obrigatoriamente, de a molécula estar presente na amostra). Agora, para o
preparo floral, a pergunta é: como essa frequência de um órgão ou molécula é
colocada lá dentro? E mais: como conseguimos medir isso, para garantir que, de
fato, temos uma frequência no produto, mesmo sem que qualquer órgão ou molécula
esteja presente ali?
É fácil usar a
analogia com as vibrações que podem ser medidas cientificamente, mas as explicações
do produto ficam apenas no campo da analogia. Cientificamente falando, se não
há princípio ativo, nenhuma frequência de excitação e emissão deve aparecer.
Mas, para sair
dessa enrascada, eles ainda têm uma carta na manga quântica: apelam ao que se
chama de “memória da água”: alegam que a água presente no frequencial floral
quântico entrou em contato com a molécula de interesse e, graças a certos
processos de fabricação não explicados de forma clara, as frequências dessas
moléculas são passadas para a água e guardadas na memória dela. De novo,
precisamos saber: como essas frequências são medidas? Como garantimos que a
água “pura” guarda essas frequências? Não é explicado. O que fazem é apelar
para os resultados de memória da água obtidos por Masaru
Emoto. Embora eu não vá entrar em todos os detalhes dos resultados
de Emoto aqui, já se sabe que eles estão cheios de problemas científicos e não
passam de uma ilusão (veja aqui, aqui, e aqui, por exemplo).
No fundo, essa
ideia de que algo sem princípio ativo, baseado em memória da água e com atuação
apenas “energética” no organismo, não é nova. A homeopatia já vem tentando
emplacar essa mesma ideia entre os cientistas há anos. Sem sucesso. Quem nunca
ouviu falar do tema, pode encontrar vários artigos da Revista Questão
de Ciência (aqui). Desde já, fica o alerta de que os
preparos usados no tratamento homeopático seguem a mesma lógica
pseudocientífica dos florais quânticos. Seriam os preparos florais da medicina
quântica a evolução da homeopatia? Eu não tenho essa resposta, mas adianto que
o Congresso estava repleto de homeopatas, bastante interessados.
Apesar de não
haver princípio ativo, todos os palestrantes são categóricos ao afirmar que os
IFFs funcionam para diversos tratamentos. Rosangela Arnt disse que
“definitivamente, eles não são placebo”. Outro palestrante já não foi tão
convicto. Este, apresentado como bioquímico e psicanalista, disse que o
tratamento com florais quânticos, como não tem princípio ativo, consiste,
basicamente, em curar pelo placebo. Apesar de soar bastante estranho ele ter
afirmado isso, mais estranho ainda é ninguém ter levantado pra ir embora. Eu
teria saído do evento, mas fiquei porque tinha que escrever este relato.
Refletindo sobre
o assunto, arrisco dizer que o bio-psicanalista não estava se referindo a uma
afirmação do tipo “florais quânticos são equivalentes a placebo”. O que
suspeito é que ele defenda algo como “florais quânticos conseguem ativar uma
cura por placebo”. O problema com essa ideia de “ativar” o placebo é que ela
pressupõe que o efeito é uma espécie de poder mágico de cura que pode ser
“evocado”. Mas, como explica Natalia Pasternak neste artigo, não é assim que a coisa
funciona, muito antes pelo contrário.
De fato, um
medicamento, para ser considerado adequado, precisa ter um efeito superior ao
do placebo (seja “ativado” ou não). E cientistas sabem como agir para verificar
isso: realizando testes duplos-cegos randomizados com grupo controle por
placebo. Para saber mais sobre esses protocolos, leia este artigo ou veja a discussão da página
9 do relatório do Conselho de Pesquisas Médicas e Saúde
Nacional da Austrália sobre testes de eficácia em homeopatia.
Evidências em
jogo
Como já falei
em outro artigo aqui na Revista
Questão de Ciência, não é porque a ciência não sabe explicar o mecanismo de
funcionamento de algo que ela vai, necessariamente, rejeitar que esse algo
funcione. Assim, por mais que não consigamos compreender como a frequência
poderia ficar na água sem a presença do princípio ativo (e mesmo o fabricante
não informando como poderíamos detectar essa “energia”), não podemos manter a
cabeça fechada. É necessário avaliar as evidências.
Durante o
Congresso, as alegadas evidências impressionantes da eficácia do tratamento com
florais quânticos vieram de duas fontes distintas: a primeira saiu dos anais do
VIII Congresso de Saúde e Terapias Quânticas. Não encontrei esse livro de anais
na internet, mas ele foi disponibilizado aos congressistas dentro da tal
pastinha do Deepak Chopra. A segunda fonte veio de uma sessão de apresentação
oral de casos de sucesso com terapia com florais quânticos. Essa sessão foi
conduzida por Rosangela Arnt e mostrou cerca de 10 casos de sucesso, enviados
por diferentes terapeutas que usaram os produtos quânticos em pacientes ao
redor do Brasil.
Começando pelo
livro de anais: ele contém 32 relatos apresentados como trabalhos científicos.
Desse total, 21 eram relatos de melhora a partir da experiência de um único
paciente. Outros envolviam mais pacientes, sendo um estudo com 180 pacientes o
maior deles. Porém, este último era feito apenas em relato de experiência de
anos com os vários sujeitos submetidos a uma série de várias terapias
alternativas, e ainda sessões terapêuticas psiquiátricas. Fora isso, os
pacientes não foram divididos em grupos distintos, e também não houve
procedimento duplo-cego de tratamento e avaliação. Alguns estudos ainda eram
relatos de pacientes que melhoraram a partir de uma combinação de tratamento
quântico com tratamento convencional.
Por fim, nenhum
dos 32 relatos envolvia uma metodologia próxima à necessária para determinar a
eficácia do tratamento. Nenhum. Então, apesar de eu reconhecer que muitos
relatos envolviam a melhora significativa dos pacientes, infelizmente, eles não
permitem concluir nada sólido sobre os florais frequenciais quânticos.
Na apresentação
oral, nada diferente. Apesar de a palestrante relatar casos que não estavam no
livro de anais do outro congresso, todos os casos apresentados eram, novamente,
referentes a melhora de um ou outro paciente. Casos isolados pelo Brasil.
Nenhuma comparação estatística séria, duplo-cega, randomizada. Portanto, nada
de sólido que se possa avaliar aqui.
Mesmo assim,
Rosangela fez um apelo aos terapeutas que participavam do evento: “registrem e
enviem seus CASOS de sucesso, pois assim vamos poder publicar
uma meta-análise e provar, de uma vez por todas, que esses frequenciais florais
não são placebo”. Embora eu não seja pesquisador da área da saúde, arrisco
dizer que um compêndio de casos isolados de sucesso continuará sendo apenas um
amontoado de casos isolados de sucesso. Enquanto não houver um estudo com todos
os controles necessários, arrisco dizer que a comunidade médica global não
passará a usar florais quânticos.
Outro tipo de
atitude que percebi, durante as palestras, foi uma mistura irresponsável entre
dados vindos de artigos científicos da área médica convencional e uma
argumentação pseudocientífica, usando o palavreado da física quântica. Um
palestrante comentou que alguns médicos prescrevem hormônios aos pacientes, mas
não obtêm a melhora esperada. O que explicaria isso?
O médico
quântico cita três artigos científicos argumentando que não adianta prescrever
hormônios quando os receptores bioquímicos nas células dos pacientes
não estão disponíveis para recebê-los. Então, o palestrante usa o resultado da
ciência legítima para argumentar que os terapeutas precisam liberar os
receptores prescrevendo ao paciente determinado frequencial floral quântico.
Esse floral, quanticamente, vibraria na frequência adequada para liberar os
receptores.
A falha dessa
argumentação é que os artigos científicos sugerem onde está o problema do ponto
de vista bioquímico, mas não permitem concluir que a melhor solução pra isso é
um floral quântico. Apesar disso, a audiência não se mostrou muito preocupada
com a incoerência, e vários congressistas tiraram seus celulares e fotografaram
o nome do preparado quântico a ser prescrito.
O lado bom
Para manter meu
relato fidedigno, é preciso registrar pontos positivos. A começar pelo local do
evento: um hotel à beira-mar, em Florianópolis, muito bonito, com piscina e
acesso fácil à praia. Auditório com uma estrutura muito bem montada, sistema de
som e imagem bastante adequados. Com capacidade para cerca de 260 pessoas, o
evento conseguiu deixá-lo praticamente lotado. O credenciamento inicial foi
muito tranquilo, sem qualquer intercorrência que eu tenha visto. Todas as
recepcionistas muito atenciosas. Além disso, o DJ mandou muito bem
nos intervalos entre as palestras.
Os palestrantes
também apresentaram suas ideias de forma clara e desenvolta. Conseguiram
agradar e cativar o público. Nem tudo que disseram e ensinaram foi
cientificamente incorreto. Acredito que como a maioria dos palestrantes teve
formação científica na área da saúde, eles conseguiram fazer uma mescla entre
afirmações científicas válidas com outras baseadas no uso indevido da física
quântica. Conselhos bons sobre nutrição, sobre o cuidado com o lado emocional e
psicológico do paciente, além de especulações interessantes sobre o futuro da
medicina personalizada, baseada na genômica do paciente, foram pontos
altos.
Boa formação
Não posso
reclamar da formação acadêmica dos palestrantes e congressistas: muitos deles,
graduados em áreas sérias das ciências, como medicina, nutrição, farmácia e
psicologia. Assim, não deixei de me perguntar: o que está acontecendo com a
formação científica desses profissionais? Como eles não conseguem perceber que
“frequencial quântico” é um uso indevido de termos científicos da física? Como
não refletem que evidências baseadas em caso único não são suficientes para
comprovar eficácia de tratamentos?
Atualmente,
a Escola Internacional de Desenvolvimento (EID) oferece um curso de
especialização de 462 horas em Terapia Vibracional Quântica. E a Dama dos
Quânticos também salientou, durante o Congresso, que estão montando um mestrado
acadêmico na área. Ou seja, profissionais que trabalham com terapias
vibracionais quânticas estão sendo formados dentro da academia, para tratar da
saúde das pessoas. Isso é oficializar e institucionalizar a pseudociência,
colocando a vida das pessoas nas mãos de terapias sem comprovação adequada. Não
me parece que esse panorama mudará em algum futuro breve.
Conclusão
A impressão mais
forte que tive é de que o evento reuniu pessoas que não estão dispostas a
pensar criticamente sobre as informações que recebem. Aceitam as citações
“profundas” e “místicas” de Chopra, Goswami e Capra como sendo a mais pura
tradução do conhecimento científico. Não se questionam sobre a eficácia dos
tratamentos apresentados.
No final das
contas, colocando tudo na balança, a mensagem final é a de que as evidências
apresentadas não são nem um pouco rigorosas e não permitem, nem de longe,
concluir que o tratamento quântico é eficaz. Embora existam casos de aparente
sucesso, não passam de casos isolados: o fato de uma pessoa ter experimentado
uma melhora de saúde depois de uma intervenção não permite supor que a
intervenção causou a melhora, porque uma infinidade de outros fatores pode ter
influído no resultado. Atribuições de causalidade requerem controles
adequados.
Marcelo Girardi
Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina,
participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a
matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas
de física moderna e astronomia
Fonte:https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2019/12/04/ciencia-de-verdade-passa-longe-de-feira-quantica
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