Psicologia - Estados Modificados de Consciência
De modo bastante conciso, pode-se definir um estado de consciência (EC), como um padrão generalizado de funcionamento psicológico (Tart, 1991). A atenção parece desempenhar importante papel no direccionamento do estado de consciência, admitindo ou negando experiências específicas que entram na consciência (Davidoff, 1983).
O estado de vigília é uma função do organismo em que o indivíduo tem consciência dos seus processos. Portanto, caracteriza-se por uma activação geral da capacidade sensorial e de relação com o meio, das funções neurovegetativas, do tónus muscular, e de todas as funções psicológicas em geral (E. Pestana & Páscoa, 1998). Neste estado de consciência “usual” ou “normal” de vigília, o indivíduo experimenta-se como existindo dentro dos limites do seu corpo físico (a imagem corporal), que o separa bastante distintamente do resto do mundo. O indivíduo tem uma percepção do meio ambiente limitada pela sensibilidade exteroceptiva. Tanto a percepção interna como a percepção do meio ambiente estão confinadas dentro de limites espaço-temporais específicos (S. Grof, 1983). Além disso, o estado “normal”, comum, desperto, é caracterizado pela lógica, pela racionalidade, pelo pensamento de causa-e-efeito, pelo objectivo direccionado e pela sensação de se estar no “controlo” da actividade mental. O pensamento “reflexivo” ocupa, aqui, um lugar de destaque. Noutras palavras, o indivíduo percebe-se como uma unidade que experimenta (Krippner, 1993). Em suma, no estado usual (ordinário) de consciência (o-SoC - ordinary state of consciousness), assimilamos e interpretamos as informações que nos são transmitidas pelos nossos sentidos em unidades de significância. Olhamos o mundo ao nosso redor e os nossos olhos seleccionam certas informações, as quais “arquivamos” (memorizamos) como um quadro parcial da realidade física. Os nossos sentidos não são capazes de apreender o todo processual e dinâmico do nosso modo de existir, no nosso universo interno e externo. Vemos o mundo como composto de muitos objectos diferentes, mais ou menos estáticos, os quais estão separados uns dos outros por espaço e, consequentemente, tornamo-nos conscientes de um filme interior (produto do processo de recognição) (Matos, 1994).
Segundo Tart (1995), as estruturas psicológicas têm características individuais que limitam e dão forma às maneiras como podem interagir umas com as outras. Assim, o biocomputador humano tem um número amplo, mas limitado de modalidades possíveis de funcionamento. Além disso, cada pessoa nasce numa cultura particular que selecciona e desenvolve um pequeno número desses potenciais, rejeita outros, e ignora muitos deles. O pequeno número de potenciais experienciais seleccionados pela nossa cultura, somado a outros factores casuais, constitui os elementos estruturais a partir dos quais é construído o nosso estado comum de consciência.
Simões (1997a) realça também que, contrariamente ao suposto geralmente, o estado habitual de consciência, em vigília, não é o mais estável, podendo mesmo ser considerado como não-usual, impossível de manter por longo período de tempo, sendo isso conseguido através de um input de estímulos perceptivos exteriores e proprioceptivos, a que se junta um discurso contínuo interior.
Em termos gerais, um estado modificado de consciência (EMC), pode ser definido como um estado mental que pode ser subjectivamente reconhecido, por um indivíduo ou por um observador objectivo desse indivíduo, como representando uma diferença no funcionamento psicológico daquele estado “normal”, alerta e desperto do indivíduo (Krippner, 1993). No entanto, é de realçar que um EMC não é definido por um conteúdo particular da consciência, por um comportamento ou por uma modificação fisiológica, mas em termos do seu padrão total (Tart, 1991).
A designação altered states of consciousness, foi utilizada pela primeira vez por Charles Tart no final dos anos 50 (Drouot, 1996). O mérito de Tart foi isolar os estados modificados de consciência provocados pelas drogas, alargando o fenómeno da expansão da consciência a um grande número de fenómenos como a meditação, o Yôga, os sonhos lúcidos, a auto-hipnose, o transe, os estados de êxtase, as vivências místicas, etc. (Descamps, 1997a). Contudo, segundo Simões (1997a), a expressão estados alterados de consciência (EAC) justifica-se apenas quando existe obnubilação de consciência. Assim, na sua opinião (Simões, 1997c), «estados modificados de consciência» é a tradução preferível da designação anglo-saxónica altered states of consciousness.
No entanto, para Tart (1995), os termos estado de consciência (EC) e estado modificado de consciência (EMC) passaram a ser usados de maneira demasiado imprecisa, significando qualquer coisa em que se pense no momento em que são experimentados. Por isso, este autor propõe os novos termos: «estado distinto de consciência», «estado básico de consciência» e «estado distinto modificado de consciência», para uma maior precisão. Um estado distinto de consciência (d-SoC - discrete state of consciousness) é um padrão ou configuração dinâmica singular de estruturas psicológicas, um sistema activo de subsistemas psicológicos. Embora as estruturas/subsistemas componentes mostrem algumas variações entre si no interior de um estado distinto de consciência, as propriedades do padrão geral, do sistema geral, são reconhecivelmente as mesmas. Apesar da variação subsistémica e ambiental, um d-SoC é estabilizado por alguns processos, mantendo assim a sua identidade e função. São exemplos de d-SoC: o estado desperto comum, o sono sem sonhos, o sono com sonhos, a hipnose, a intoxicação alcoólica e por canabinóides (e.g., haxixe), e os estados de meditação. Quanto ao estado distinto modificado de consciência (d-ASC - discrete altered state of consciousness), refere-se a um d-Soc que difere de algum estado básico de consciência (b-SoC - baseline state of consciousness). Em geral, o estado normal de vigília é considerado o estado básico. Um d-ASC é um novo sistema de características singulares próprias, o que implica uma reestruturação da consciência. “Modificado” é usado como termo puramente descritivo, sem ter valores agregados a si.
Os estados modificados de consciência caracterizam-se por um decréscimo na capacidade de autocontrole e da lógica, por mudanças na percepção do «eu» (Fernald, 1997), por alterações espectaculares da percepção ao nível sensorial e ao nível emocional, por importantes manifestações psicossomáticas, e por profundas modificações do pensamento e do comportamento, no sentido de uma libertação, de uma expansão, de uma abertura a nós próprios e ao mundo que nos rodeia (S. Grof, 1997).Para Dittrich (1997), as características gerais dos estados modificados de consciência, podem resumir-se nos seguintes pontos:
1. Representarem um desvio do habitual estado de consciência do indivíduo saudável, quanto ao seu funcionamento psicológico ou percepção subjectiva, não apenas ao nível da coordenação motora, mas igualmente quanto à consciência de si mesmo e no relacionamento com o mundo, como que constituindo uma realidade separada no tempo e no espaço;
2. Durarem apenas uma ou poucas horas ao contrário das perturbações psiquiátricas;
3. Poderem ser auto-induzidos ou, pelo menos, de indução voluntariamente aceite;
4. Ocorrerem “normalmente”, não sendo o resultado de doença ou de circunstâncias sociais adversas;
5. Serem considerados “irracionais”, “anormais”, “exóticos” ou até “patológicos” pelas normas sociais dominantes na sociedade ocidental.
Na génese dos conteúdos dos EMC encontra-se um processamento da informação resultante da experiência, sendo aquela tratada como material ambíguo, temporariamente presente, condicionado pelo seu conhecimento prévio e por esquemas cognitivos. Outros factores intervenientes são a análise estrutural e semântica, por comparação com informação previamente armazenada. Contudo, é de realçar que, no EMC não ocorre apenas uma perturbação cognitiva, mas também uma alteração do humor ou afecto. No fundo, trata-se de uma vivência, em que a totalidade da personalidade é envolvida e por isso susceptível de modificar as cognições (Simões, 1997a).
Estes estados de consciência podem ser produzidos naturalmente (e.g., sono, sonho) ou através de esforços intencionais, tais como, danças, meditação, hipnose, ou ingestão de drogas (Davidoff, 1983; Fernald, 1997). Portanto, os EMC podem ser induzidos por processos naturais, psicológicos, ou por agentes exógenos, o que aponta para uma base psicofisiológica deste fenómeno (Simões, 1997a).
De acordo com Simões et al. (1986), os agentes de indução mais importantes de estados modificados de consciência, são:
1. Alucinogéneos de primeira ordem: mescalina; LSD (dietilamida do ácido lisérgico, ou apenas, «ácido»); psilocibina; N,N-dimitiltriptamina (DMT); e o 9-THC, a substância activa do haxixe e da marijuana;
2. Alucinogéneos de segunda ordem: escopolamina; gás hilariante (óxido nitroso); muscimol, a substância activa do amanita muscaria (espécie de cogumelo venenoso). O seu efeito é caracterizado, frequentemente, por obnubilação da consciência e, mais raramente, por alucinações cénicas;
3. Redução dos estímulos do meio externo ou contactos ambientais, em sentido lato, o que inclui: a privação sensorial; estados hipnagógicos; hipnose; técnicas auto-hipnóticas como o Treino Autogéneo de Schultz; e técnicas de meditação;
4. Aumento dos estímulos do meio ou contactos ambientais (inundação ou sobrecarga de estímulos sensoriais). Há basicamente dois tipos diferentes: (1) uma estimulação intensa monótona e rítmica de vários órgãos sensoriais; e (2) “bombardeamento” sensorial com estímulos muito variáveis.
Outros agentes que provocam estados modificados de consciência, que não encaixam neste esquema são, por exemplo, a combinações de diferentes destas técnicas, a hiperventilação, a privação de sono (Dittrich, 1997), a provocação de sentimentos mais fortes, quer de tipo negativo (medo, dor, abandono) quer de tipo positivo (protecção, sentimentos de auto-estima e felicidade, elegibilidade, condescendência, corrente de força), a fome, o jejum, o frio, o calor, o jogging, o alpinismo, o mergulho (Scharfetter, 1999), ou um esforço físico extremo (S. Grof & C. Grof, 1995b).
Pensamos que na prática de Karate-Do, a concentração intensa na actividade física, o aumento do ritmo respiratório, os mesmos elementos que também estão comprometidos com técnicas meditativas, e também a pressão exercida pelo perigo de sofrer algum dano físico, podem ser os desencadeadores de um estado modificado de consciência.
Contudo, C. Grof e S. Grof (1994) salientam que, a grande série de aparentes factores desencadeadores de estados modificados de consciência, sugere claramente que a vontade das pessoas em vivenciá-los, é muito mais importante do que a existência de estímulos externos.
Os EMC podem também surgir de modo espontâneo, sem causa específica discernível, muitas vezes contra a vontade da pessoa a quem acontecem. Além disso, todas as pessoas têm - pelo menos duas vezes por dia - a experiência de estados modificados de consciência: no momento de adormecer (estado hipnagógico) e no momento de acordar (estado hipnopômpico). É entre a vigília e o sono que se encontra um espaço privilegiado em que podemos ter sonhos, determinadas visões e determinadas percepções (Baudin & Tora, 1997).
Os estados modificados de consciência apresentam características precisas, compreensíveis e verbalizáveis, que ocorrem raramente durante o estado de vigília “normal” (Simões, 1997c). O número de características diferenciais determina a posição de um EMC, segundo escalas, que vão do estado de consciência normal ao EMC extremo (Simões et al., 1986).
Os estados modificados de consciência têm um conjunto de pontos comuns (conteúdos), independentemente do modo como são induzidos. A um nível dimensional, significa que os EMC têm em comum determinadas dimensões principais, independentemente da sua origem ou intensidade (Simões, 1997a). Estas dimensões são designadas por: «Auto-ilimitação Oceânica», «Autodissolução Angustiante» e «Reestruturação Visionária» (Simões et al., 1986).
A teorização dos estados modificados de consciência rompe com os paradigmas da lógica formal, nomeadamente da continuidade espaço-tempo, da contradição, da causalidade linear, da psicologia da consciência do Eu (vitalidade, actividade, consistência ou unidade, demarcação, identidade), etc., mas também com o pressuposto da consciência como produto exclusivo do cérebro (Simões, 1997a).
Fonte:http://alexandreramos.blogs.sapo.pt/1325.html
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