Evidências científicas da
episteme homeopática
Marcus Zulian Teixeira
Marcus Zulian
Teixeira; Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP);
marcus@homeozulian.med.br
Este
artigo é uma tradução de Teixeira MZ. Scientific evidence of the
homeopathic epistemological model. Int J High Dilution Res [online]. 2011
[cited 2011 Junho 30]; 10(34):46-64.
Disponível em:
http://www.feg.unesp.br/~ojs/index.php/ijhdr/article/view/421/459.
Resumo
A homeopatia
fundamenta-se em princípios e conhecimentos distintos do modelo biomédico
convencional, dificultando sua compreensão e aceitação pela racionalidade
científica contemporânea. Para que se consiga legitimar a homeopatia perante a
episteme moderna, torna-se fundamental a produção de pesquisas que confirmem
esses princípios homeopáticos: princípio da similitude, experimentação no
indivíduo sadio, medicamento dinamizado e medicamento individualizado. Enquanto
as pesquisas nas áreas básicas da ciência devem sustentar a validade dos
pressupostos homeopáticos, os ensaios clínicos têm o intuito de confirmar a
efetividade da homeopatia no tratamento das enfermidades. Nesse ensaio, nos
propusemos a discutir a episteme homeopática, fundamentando os pilares homeopáticos
nas diversas áreas da pesquisa experimental moderna e endossando o emprego
terapêutico da homeopatia nas pesquisas clínicas existentes. Como premissa
fundamental dessa racionalidade homeopática, a individualização do medicamento
figura como condição imprescindível para que o princípio da similitude seja
despertado e o tratamento homeopático apresente eficácia e efetividade clínica.
Palavras chave
Fundamentos da
homeopatia; Educação médica; Lei da similitude; Ação farmacodinâmica do
medicamento homeopático; Pesquisa biomédica.
Scientific
evidence of the homeopathic model
Summary
Homeopathy is
based on principles and a system of knowledge different from the ones
supporting the conventional biomedical model: this epistemological conflict is
the underlying reason explaining why homeopathy is so difficult to accept by
present-day scientific reason. To legitimize homeopathy according to the
standards of the latter, research must confirm the validity of its basic
assumptions: principle of therapeutic similitude, trials of medicines on
healthy individuals, individualized prescriptions and use of high dilutions.
Correspondingly, basic research must supply experimental data and models to
substantiate the basic assumptions, whilst clinical trials aim at confirming
the efficacy and effectiveness of homeopathy in the treatment of disease.
This article
discusses the epistemological model of homeopathy relating its basic
assumptions
with data resulting from different fields of modern experimental research
and supporting
its therapeutic use on the outcomes of available clinical trials. In this
regard, the
principle of individualization of treatment is the sine qua non condition to
make
therapeutic similitude operative and consequently for homeopathic treatment to
exhibit
clinical efficacy and effectiveness.
Keywords:
Foundations of homeopathy; Medical education; Law of similar;
Pharmacodynamic
action of homeopathic remedies; Biomedical research.
INTRODUÇÃO
Fundamentada em 1796 pelo médico
alemão Samuel Hahnemann, a homeopatia é um
modelo terapêutico empregado
mundialmente e que vem despertando o interesse
crescente de usuários, estudantes de
medicina e médicos [1], por propiciar uma prática
segura e eficiente, propondo-se a
compreender e tratar o binômio doente-doença
segundo uma abordagem antropológica
globalizante e humanística [2,3], valorizando
os diversos aspectos da
individualidade enferma.
Reconhecida como especialidade médica
pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)
desde 1980 (Resolução CFM 1000/80) e
com título de especialista conferido pela
Associação Médica Brasileira (AMB)
desde 1990, a homeopatia desenvolve suas
atividades de forma concomitante ao
movimento científico hegemônico, divulgando sua
episteme em cursos de pós-graduação
lato senso (1.200 horas-aula) oferecidos por
entidades formadoras vinculadas à
Associação Médica Homeopática Brasileira
(AMHB).
Com os procedimentos homeopáticos
reembolsados pelas empresas de grupo e
seguros-saúde, a partir de 1985
passou a ser disponibilizada no Serviço Público de
Saúde, contando, no Brasil, com
aproximadamente quinze mil médicos praticantes.
Segundo levantamento realizado na
década passada junto aos médicos brasileiros pela
Fundação Fiocruz e pelo CFM [4], a
homeopatia, como especialidade principal de
atuação, ocupava o 17º maior
contingente de profissionais dentre 61 especialidades
médicas existentes.
Após ser aprovada pela Comissão
Nacional de Residência Médica em 2002 (Resolução
CFM 1634/2002), a homeopatia passou a
ser oferecida em 2004 no programa de
residência médica da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO,
Hospital Universitário Gaffrée e
Guinle) como opção de treinamento em serviço [5],
atuando de forma adjuvante ao
tratamento convencional das enfermidades em
ambulatórios e enfermarias da
Instituição. Esse exemplo de prática médica integrada
vem permitindo que o diálogo entre
racionalidades médicas distintas beneficiem os
pacientes com o que existe de melhor
em termos de diagnóstico, prevenção e
tratamento dos distúrbios da saúde.
Apesar da demanda crescente da
população pela terapêutica nas últimas décadas,
apenas 110 dos mais de 5.000
municípios brasileiros disponibilizam a homeopatia na
rede pública, embora a especialidade
tenha respondido por mais de 300 mil consultas.
no Serviço Único de
Saúde (SUS) em 2007, que corresponde a 10% das consultas de atenção básica do
período, segundo dados do Ministério da Saúde. [6]
Iniciativas na educação
médica mundial têm viabilizado o ensino dos pressupostos homeopáticos nas
faculdades de medicina, incorporando disciplinas obrigatórias e/ou eletivas ao
currículo fundamental, permitindo que a informação respaldada pelas evidências
científicas e pelas práticas clínicas possa dissolver o preconceito arraigado à
cultura médica. [7,8]
Empregada como opção
terapêutica há mais de dois séculos em diversos países, a homeopatia permanece
marginalizada perante a racionalidade científica moderna, por estar fundamentada
em conceitos pouco ortodoxos (princípio da similitude, experimentação no
indivíduo sadio, medicamento dinamizado e medicamento individualizado) que
desafiam a racionalidade dominante. O modelo de tratamento homeopático emprega
o princípio de cura pela similitude, administrando doses infinitesimais de
substâncias que, ao terem sido experimentadas previamente em indivíduos sadios,
apresentaram sintomas semelhantes aos dos indivíduos enfermos. Para se tornar
um medicamento homeopático, a substância deve ser submetida a protocolos
específicos de experimentação em indivíduos humanos e ter seus efeitos
patogenéticos (mentais, gerais e particulares) descritos na Matéria Médica
Homeopática (MMH).
Considerando o ser
humano como uma entidade complexa, a concepção antropológica do modelo
homeopático atribui ao corpo biológico uma natureza dinâmica, na qual os
pensamentos e os sentimentos interagem com os sistemas orgânicos e suas funções
fisiológicas, tornando a individualidade mais ou menos suscetível aos diversos
agentes patogênicos. Resultante desta concepção psicossomática e globalizante
do processo de adoecimento humano, a semiologia homeopática valoriza os
múltiplos aspectos do enfermo, compondo um quadro sintomático que englobe as
características peculiares das diversas esferas humanas (biológica, psíquica,
social e espiritual) para realizar o diagnóstico medicamentoso
“individualizado”.
Respondendo ao
frequente questionamento sobre a existência de evidências científicas do modelo
homeopático, iremos descrever nesse ensaio algumas linhas de pesquisas básicas
e clínicas contemporâneas que endossam os referidos pressupostos homeopáticos,
descritos mais detalhadamente em revisões referendadas.
EPISTEME HOMEOPÁTICA
Princípio da similitude
Embasado no estudo das
propriedades farmacológicas de dezenas de substâncias medicamentosas de sua
época, nas quais observou uma reação secundária (efeito indireto) do organismo
após a ação primária (efeito direto) de drogas das mais diversas classes, Hahnemann
enunciou um aforismo para a ação dos medicamentos na constituição humana:
“Toda força que atua
sobre a vida, todo medicamento afeta, em maior ou menor escala, a força vital
causando certa alteração no estado de saúde do Homem por um período de tempo
maior ou menor. A isso se chama ação primária. [...] A essa ação, nossa
força vital se esforça para opor sua própria energia. Tal ação oposta faz parte
de nossa força de conservação, constituindo uma atividade automática da mesma,
chamada ação secundária ou reação”. (Organon da arte de curar,
§ 63) [9]
Ilustrando esse fenômeno
ou lei natural, descreve a ação primária dos medicamentos de
sua época, promotora de alterações nos diversos sistemas orgânicos, e a
consequente ação secundária do organismo (reação vital ou força de
manutenção ou conservação), que se manifesta no sentido de neutralizar os
distúrbios primários causados pelos fármacos, na tentativa de retornar ao
equilíbrio do meio interno alterado pela intervenção terapêutica:
“[...] À ingestão de
café forte, segue-se uma superexcitação (ação primária); porém, um grande
relaxamento e sonolência (reação, ação secundária) permanecem por algum tempo
se não continuar a ser suprimido através de mais café (paliativo, de curta
duração). Após o sono profundo e entorpecedor produzido pelo ópio (ação
primária), a noite seguinte será tanto mais insone (reação, ação secundária).
Depois da constipação produzida pelo ópio (ação primária), segue-se diarréia
(ação secundária) e, após purgativos que irritam os intestinos (ação primária),
sobrevêm obstrução e constipação por vários dias (ação secundária). Assim, por
toda parte, após a ação primária de uma potência capaz de, em grandes doses,
transformar profundamente o estado de saúde do organismo sadio, é justamente o
oposto que sempre ocorre na ação secundária, através de nossa força vital”. (Organon
da arte de curar, § 65) [9]
Administrando aos
indivíduos enfermos as substâncias que causaram sintomas semelhantes nos
experimentadores sadios (similia similibus curentur), a aplicação do
princípio da similitude terapêutica tem como objetivo estimular uma reação
homeostática curativa contra a enfermidade, induzindo o organismo a reagir
contra os seus próprios distúrbios. Descrito em 1860 pelo fisiologista da
Sorbonne, Claude Bernard, como “fixité du milieu intérieur”, o termo
“homeostase” foi cunhado em 1929 pelo fisiologista de Harvard, Walter Bradford
Cannon, significando, em ambos momentos, a tendência ou a habilidade dos
organismos vivos em manter a constância do meio interno através de auto-ajustes
nos processos fisiológicos.
Citado por Hipócrates e
outros expoentes ao longo da história da medicina, o princípio da similitude
(reação vital ou homeostática) encontra fundamentação científica na farmacologia
e na fisiologia modernas, através do “efeito rebote” das drogas ou “reação
paradoxal” do organismo, sendo descrito após a suspensão ou a alteração das
doses de inúmeras classes de fármacos modernos que atuam de forma contrária
(antagônica, antipática, oposta, paliativa ou enantiopática) aos sintomas das
doenças, sendo confirmado em centenas de estudos da farmacologia clínica
experimental. [10,11]
Com o intuito de fundamentar a
racionalidade homeopática no conhecimento científico moderno, vimos utilizando,
na última década, as nomenclaturas e os estudos científicos da farmacologia e
da fisiologia modernas para fundamentar o princípio da similitude.
nas áreas básicas da
Ciência. Apesar das centenas de pesquisas científicas nessa área (efeito
rebote das drogas) publicadas em periódicos de altíssimo impacto, o ensino
e a divulgação do mecanismo de ação das drogas modernas despreza a existência
desse fenômeno natural (citado pela homeopatia há mais de dois séculos),
evitando que inúmeras iatrogenias decorrentes do emprego das drogas
enantiopáticas modernas pudessem ser evitadas com a transmissão desse
conhecimento aos médicos em geral.
Ilustrando o
anteriormente citado, medicamentos utilizados classicamente para o tratamento
da angina pectoris (beta-bloqueadores, bloqueadores dos canais de
cálcio, nitratos, etc.), que promovem a melhora da angina pela sua ação
primária enantiopática (antianginosos), podem despertar exacerbações na
frequência e na intensidade da dor torácica em decorrência da ação secundária
do organismo, após a suspensão ou a descontinuação das doses, em alguns casos
não responsivos a qualquer terapêutica. Drogas enantiopáticas utilizadas no
controle da hipertensão arterial (agonistas alfa-2 adrenérgicos,
beta-bloqueadores, inibidores da ECA, inibidores da MAO, nitratos,
nitroprussiato de sódio, hidralazina, etc.) podem provocar uma hipertensão
arterial rebote, como reação paradoxal do organismo ao estímulo primário.
Medicamentos antiarrítmicos (adenosina, amiodarona, beta-bloqueadores,
bloqueadores dos canais de cálcio, disopiramida, flecainida, lidocaína,
mexiletina, moricizina, procainamida, quinidina, digitálicos, etc.) podem
despertar, após a interrupção do tratamento, exacerbação rebote das arritmias
ventriculares basais. Drogas anticoagulantes (argatroban, bezafibrato,
heparina, salicilatos, warfarin, clopridogel, etc.), empregadas por sua ação
primária na profilaxia da trombose sanguínea, podem promover complicações
trombóticas em decorrência da ação secundária ou do efeito rebote do organismo.
No emprego de drogas psiquiátricas como os ansiolíticos (barbitúricos,
benzodiazepinas, carbamatos, etc.), sedativos-hipnóticos (barbitúricos,
bendodiazepinas, morfina, prometazina, zopiclone, etc.), estimulantes do SNC
(anfetaminas, cafeína, cocaína, mazindol, metilfenidato, etc.), antidepressivos
(tricíclicos, inibidores da MAO, inibidores da recaptação de serotonina,
etc.) ou antipsicóticos (clozapina, fenotiazínicos, haloperidol,
pimozida, etc.) pode-se observar uma reação paradoxal do organismo no sentido
de manter a homeostase orgânica, promovendo sintomas contrários aos esperados
na sua utilização terapêutica enantiopática primária, agravando ainda mais o
quadro inicial. Drogas com ação primária antiinflamatória (corticosteróides,
ibuprofeno, indometacina, paracetamol, salicilatos, etc.) podem desencadear
respostas secundárias do organismo, aumentando a inflamação e a concentração
plasmática dos seus mediadores. Fármacos com ação primária analgésica (cafeína,
bloqueadores dos canais de cálcio, clonidina, ergotamina, metisergida,
opióides, salicilatos, etc.) podem apresentar importante hiperalgesia como
efeito rebote. Diuréticos (furosemida, torasemida, trianterene, etc.),
utilizados enantiopaticamente para diminuir a volemia (edema, hipertensão
arterial, ICC, etc.) podem causar retenção rebote de sódio e potássio,
aumentando a volemia basal. Medicamentos utilizados primariamente como antidispépticos
(antiácidos, antagonistas do receptor H2, misoprostol, sucralfato, inibidores
das bombas de próton, etc.) no tratamento das gastrites e úlceras
gastroduodenais, podem promover, após uma diminuição primária da acidez,
aumento rebote na produção gástrica de ácido clorídrico, chegando a causar
perfuração de úlceras gastroduodenais crônicas. Broncodilatores (broncodilatores
adrenérgicos, cromoglicato dissódico, epinefrina, ipatropio, nedocromil,
salmeterol, formoterol, etc.) utilizados no tratamento da asma brônquica, podem
promover piora da broncoconstrição como resposta secundária do organismo à
suspensão ou descontinuidade do tratamento. Etc. [10,11]
Apesar do caráter
idiossincrático desse efeito rebote, que se manifesta numa pequena proporção
dos indivíduos (em torno de 5%) e que por esse mesmo motivo justifica a
necessidade da individualização do medicamento homeopático, evidências
científicas atuais alertam para a ocorrência de eventos iatrogênicos graves e
fatais em decorrência desta reação paradoxal do organismo, após a suspensão de
algumas classes de drogas enantiopáticas modernas [12]: antiinflamatórios
seletivos e não-seletivos da COX-2 causando tromboses fatais (infarto agudo do
miocárdio, IAM; acidente vascular encefálico, AVE), secundariamente ao seu
efeito primário anticoagulante [13]; broncodilatadores de longa duração (β-agonistas)
causando broncoespasmos irreversíveis e fatais, após uma ação primária
broncodilatadora [14]; antidepressivos inibidores da recaptação de serotonina
exacerbando ideações suicidas, após uma melhora inicial dessas manifestações
[15]; estatinas causando eventos vasculares fatais (IAM, AVE), após um
incremento inicial dos efeitos pleiotrópicos ou vasculoprotetores [16];
inibidores das bombas de prótons causando hipersecreção ácida rebote
(hipergastrinemia, exacerbação de gastrites e úlceras, câncer gástrico), após
uma melhora inicial da acidez gástrica [17]; etc.
De forma análoga aos
medicamentos homeopáticos clássicos, o efeito rebote dos fármacos modernos com
ação contrária aos sintomas incomodativos (medicamentos “enantiopáticos” ou
“anti-”) poderia ser empregado segundo o modelo homeopático, estimulando
reações homeostáticas favoráveis (Ex.: anticoncepcionais promovendo ovulação e
concepção rebote em mulheres com esterilidade funcional; imunossupressores
despertando imunoestimulação paradoxal em indivíduos imunossuprimidos; etc.).
Ou seja, o princípio da similitude curativa pode ser empregado com qualquer
substância, natural ou sintética, em dose ponderal ou infinitesimal, sendo uma
alternativa terapêutica ao princípio dos contrários empregado pela medicina
convencional. [18-20]
Estudos no campo da
pesquisa básica também evidenciam a ação das ultradiluições na indução desta
resposta terapêutica homeostática ao testarem os efeitos protetores ou
curativos das preparações homeopáticas de diversas toxinas (arsênico, mercúrio,
cobre, chumbo, etc.) em modelos laboratoriais (animais, vegetais, cultura de
células, etc.) submetidos à intoxicação experimental com as mesmas substâncias
[21]. Em outras áreas do conhecimento científico, utilizando a terminologia
“hormesis”, a reversão da ação tóxica de inúmeros agentes é demonstrada no uso
terapêutico destes mesmos agentes em doses infinitesimais, com o intuito de
despertar o fenômeno de compensação orgânica ou homeostática. [22]
Experimentação patogenética homeopática
Para adquirir o
conhecimento das propriedades patogenéticas das substâncias que permitam a
aplicação do princípio da similitude, a homeopatia utiliza a experimentação
patogenética homeopática (experimentação no indivíduo sadio ou ensaio
patogenético homeopático) como modelo de pesquisa clínica farmacológica
(semelhante aos modernos ensaios pré-clínicos fase 1), valorizando todas as
classes de manifestações sintomáticas despertadas pelas substâncias medicinais
nos indivíduos humanos (mentais, gerais e particulares), em doses ponderais ou
infinitesimais, denominados pela farmacologia moderna como efeitos
terapêuticos, adversos e colaterais das drogas:
“Todos os efeitos
patogenéticos de cada medicamento precisam ser conhecidos, isto é, todos os
sintomas e alterações mórbidas da saúde que cada um deles é especialmente capaz
de provocar no homem sadio devem ser primeiramente observados antes de se poder
esperar encontrar e escolher, entre eles, o meio de cura homeopático adequado
para a maioria das doenças naturais”. (Organon da arte de curar, § 106)
[9]
Seguindo as premissas
estipuladas por Hahnemann (Organon da arte de curar, § 105-145),
inúmeras substâncias foram experimentadas segundo diversos protocolos de
experimentação patogenética homeopática [23,24], com o intuito de se adquirir o
“conhecimento dos instrumentos destinados à cura das doenças naturais”,
averiguando-se o “poder patogenético dos medicamentos, a fim de que, quando
precisar curar, possa-se escolher, entre eles, um cujas manifestações
sintomáticas possam constituir uma doença artificial tão semelhante quanto
possível à totalidade dos sintomas principais da doença natural a ser curada”.
Todos os sintomas
observados nas diversas experimentações patogenéticas dos medicamentos
homeopáticos são compilados para a Matéria Médica Homeopática (MMH), seguindo
uma sistematização anatômico-funcional (Mental, Cabeça, Olho, Ouvido, Nariz,
Face, Boca, Garganta, Estômago, Abdome, etc.). Na prática clínica, o médico
homeopata utiliza também o Repertório de Sintomas Homeopáticos (RSH), no qual
todos os medicamentos homeopáticos que despertaram o mesmo sintoma nas
experimentações são agrupados numa mesma rubrica, facilitando a seleção do
medicamento homeopático que englobe a totalidade de sintomas característicos do
paciente.
Medicamento dinamizado
Contrariando o modelo
farmacológico bioquímico e dose-dependente da racionalidade moderna, causa
surpresa ao pensamento científico restrito ao paradigma molecular o fato de que
de substâncias ultradiluídas ou dinamizadas possam despertar alguma resposta em
sistemas biológicos ou seres vivos, sendo esse o principal alvo das críticas ao
modelo homeopático, apesar desse não ser o principal postulado da homeopatia.
Desde a época de Hahnemann até os dias atuais, tanto a experimentação
patogenética quanto o princípio da similitude curativa (que é o principal
postulado homeopático) é aplicado utilizando-se doses ponderais e/ou
infinitesimais das substâncias.
Vale ressaltar que a
nanociência, assim como os campos eletromagnéticos, vêm assumindo papel de
destaque na pesquisa científica moderna, sendo utilizados em inúmeras
aplicações na Medicina. Numa simples consulta à base de dados PubMed,
utilizando as palavras-chave “nanoparticle” e “medicine”, encontramos milhares
de trabalhos científicos discorrendo sobre o emprego dessas partículas
infinitesimais nas ciências biomédicas, o mesmo ocorrendo com as palavras-chave
“eletromagnetic fields”. e “medicine”. Isso demonstra as relações existentes
entre o mundo subatômico (não-molecular) e a saúde humana, assim como sua
possível utilização terapêutica.
Retornando à
homeopatia, entendamos como as doses infinitesimais surgiram na evolução do
tratamento homeopático. Com o objetivo inicial de evitar as “intoxicações” e as
“agravações” que as substâncias aplicadas segundo o princípio da similitude
poderiam causar nos indivíduos, Hahnemann propôs um método farmacotécnico para
a preparação dos medicamentos homeopáticos (“dinamização”), no qual as
substâncias eram diluídas e agitadas sucessivamente com o intuito de “diminuir
o efeito patogenético primário”, observando, a posteriori, que estas
preparações infinitesimais e “imponderáveis” mobilizavam atividade biológica e
psíquica nas diversas esferas da individualidade humana:
“A arte de curar
homeopática, mediante um procedimento que lhe é próprio e nunca antes tentado,
desenvolve, para seus fins específicos, os poderes medicamentosos internos e
não materiais das substâncias em estado cru, em um grau até então jamais
observado, pelo qual todas elas se tornam incomensuravelmente - penetrantemente
- eficazes e benéficas, mesmo aquelas que no estado cru não demonstram a
menor ação medicamentosa sobre o organismo humano. Essa notável mudança nas
qualidades dos corpos naturais, mediante ação mecânica em suas menores partes
por atrito e sucussão (partes estas que, por sua vez, são separadas umas das
outras, através de uma substância indiferente seca ou líquida), desenvolve
as forças dinâmicas latentes e, até então, despercebidas, ocultas, como que
adormecidas, que afetam especialmente o princípio vital, influenciando o
bem-estar da vida animal. Esse preparo, por conseguinte, chamado dinamizar,
potencializar (desenvolvimento da força medicamentosa) e os produtos são
dinamizações ou potências em diferentes graus”. (Organon da arte de curar, §
269) [9]
De forma simplificada,
o método farmacotécnico da dinamização (centesimal Hahnemanniana ou cH)
consiste em diluições centesimais (1:100) e sucessivas da substância padrão,
acompanhadas de 100 agitações vigorosas (sucussões) por passagem:
1 parte da substância matriz (reinos vegetal, animal ou mineral) + 99
partes de água ð 100
sucussões ð 1cH (10-2 mol);
1 parte da 1cH + 99 partes de água ð 100
sucussões ð 2CH (10-4 mol);
1 parte da 2cH + 99 partes de água ð 100
sucussões ð 3CH (10-6 mol);
1 parte da 3cH + 99 partes de água ð 100
sucussões ð 4CH (10-8 mol); Etc.
12cH ð 10-24 mol da substância matriz (Número
de Avogadro: 6,02 x 10-23 mol = 1 molécula-grama) ð ausência
de matéria (“imponderável”).
A capacidade destas “informações
medicamentosas”, contidas nas doses infinitesimais de substâncias
ultradiluídas, em promover alterações nos sistemas biológicos, de forma análoga
às doses ponderais (independente da sua utilização segundo o princípio da
similitude curativa), tem sido estudada e confirmada em diversos trabalhos
científicos, sejam em modelos físico-químicos ou biológicos de pesquisa.
Modelos físico-químicos de pesquisa
Algumas hipóteses
fundamentadas em modelos experimentais físico-químicos buscam uma explicação
científica para o fenômeno da transmissão da informação dos efeitos
primários das substâncias através destas doses infinitesimais. Dentre elas,
citamos as pesquisas que estudam as modificações de natureza eletromagnética da
água segundo a “eletrodinâmica quântica”, na qual a matéria não representaria
um aglomerado inerte de moléculas e sim um meio dinâmico, capaz de selecionar e
catalisar as reações moleculares de acordo com os diversos campos
eletromagnéticos que ocorrem em seu interior.
Através de modelos
matemáticos e experimentais, sugere-se que o campo eletromagnético de qualquer
soluto pode gerar certos “domínios de coerência estável” no solvente (com
estruturas e vibrações específicas), produzindo aglomerados ou “clusters” de
moléculas de água (com tamanho e geometria próprios), como uma “assinatura
eletromagnética da substância na água” (“memória da água”). Assim sendo, a
organização da água seria um processo coerente, reprodutível e associado a
interações eletromagnéticas de longo alcance e baixíssima intensidade,
transmitindo repetitivamente a informação eletromagnética do soluto
inicialmente diluído e sucussionado pelo processo da dinamização homeopática.
[25-29]
Exemplificando os
trabalhos científicos nessa área, a “termoluminescência de baixa temperatura”
tem sido utilizada na tentativa de compreender a estrutura especial das
ultradiluições. Após o congelamento na temperatura do nitrogênio líquido (77º
K), as ultradiluições de diferentes substâncias ativadas por raios gama
irradiaram o mesmo espectro de termoluminescência das referidas substâncias em
doses ponderais. [30-33] Atendo-nos à pesquisa brasileira, estudos
desenvolvidos no Instituto de Química da UNICAMP [34] e no Instituto de Física
da USP [35], dentre outros, evidenciaram essa “memória da água” em diferentes
modelos físico-químicos e com utilidades diversas.
Estudos recentes,
empregando métodos ultra-sensíveis (microscopia eletrônica de transmissão,
difração de elétrons e espectrometria de emissão atômica), demonstraram a
existência de nanopartículas nas ultradiluições homeopáticas, sugerindo que
essas partículas infinitesimais podem estar relacionadas à atividade das
preparações homeopáticas. [36]
Modelos biológicos de pesquisa
Em 1988, o grupo liderado pelo
imunologista Jacques Benveniste publicou na revista Nature um estudo in
vitro que mostrou o efeito das ultradiluições de anticorpos anti-IgE na
degranulação de basófilos [37]. Esse experimento, após sua publicação, foi
duramente criticado nas considerações teóricas, na dificuldade de reprodução
dos resultados e na metodologia insuficiente, segundo uma inspeção organizada
por uma equipe da Nature no laboratório de Benveniste [38]. Num segundo
momento, Benveniste et al. [39,40] repetiram o ensaio utilizando metodologia e
avaliação estatística mais aperfeiçoada, concluindo pela existência do efeito
das ultradiluições.
Na contraprova, dois
outros trabalhos tentaram repetir o estudo inicial, sem obter os resultados
anteriores, e os autores concluíram que se tratava de um modelo de difícil
reprodução [41,42].
Dando continuidade a
experimentos prévios [43-45], estudos multicêntricos recentes, sob a
coordenação de pesquisadores ortodoxos, encontraram resultados semelhantes aos
de Benveniste, observando que ultradiluições de histamina inibiram
significativamente a degranulação de basófilos induzida por anti-IgE [46-50].
Reproduzindo o modelo
de Endler et al. [51,52], que evidenciou a ação das ultradiluições de tiroxina
no retardo da metamorfose e do desenvolvimento de girinos numa série de quatro
experimentos, Guedes et al. [53] realizaram ensaio semelhante no Departamento de
Patologia da FMUSP, confirmando os dados iniciais.
Dezenas de outros
estudos foram realizados com essa mesma abordagem e com diferentes objetos de
pesquisa (culturas de células, vegetais e animais), demonstrando que as
substâncias dinamizadas apresentam o mesmo efeito primário (informação) da
substância de origem no estado bruto, tendo sido descritos em revisões
recentes. [54-60]
Medicamento homeopático individualizado
Segundo Hahnemann, o
médico que se intitule um “legítimo artista da cura” deve ser capaz de
reconhecer o que deva ser curado em cada caso individualmente e compreender o
elemento curativo dos medicamentos, adequando-os em qualidade e quantidade às
necessidades do enfermo, segundo o princípio da similitude.
Encarando o processo de
adoecimento como um enfraquecimento dos mecanismos fisiológicos normais de
adaptação e compensação, Hahnemann correlacionou qualquer desequilíbrio
interior às diversas manifestações sintomáticas individuais, utilizando esta
“totalidade de sintomas” como o principal e único referencial para diagnosticar
o “padecimento da força vital” (predisposição individual, suscetibilidade
mórbida ou desequilíbrio homeostático) e para prescrever os medicamentos
homeopáticos mais semelhantes à individualidade enferma:
“[...] a totalidade de
seus sintomas, esse quadro do ser interior da doença que se reflete no
exterior, isto é, do padecimento da força vital, deve ser o principal ou o
único através do qual a doença dá a conhecer o meio de cura de que ela
necessita, o único que pode determinar a escolha do meio de auxílio adequado -
em suma, a totalidade dos sintomas deve ser, para o artista da cura, a
coisa principal, senão a única que ele, em cada caso de doença, necessita
conhecer e afastar através de sua arte, a fim de que a doença seja
curada e transformada em saúde”. (Organon da arte de curar, § 7) [9]
No conjunto dos sinais e sintomas
manifestos, a semiologia homeopática seleciona “os mais evidentes, singulares,
incomuns e característicos” a cada caso (idiossincrásicos), desprezando os
sintomas comuns, gerais e indefinidos pela inerente ausência de poder
individualizante nos mesmos:
“Nessa procura do meio
de cura homeopático específico, isto é, nessa confrontação do conjunto
característico dos sinais da doença natural contra a série de sintomas dos
medicamentos existentes a fim de encontrar um cujas potências mórbidas
artificiais correspondam, por semelhança, ao mal a ser curado, deve-se,
seguramente, atentar especialmente e quase que exclusivamente para os sinais e
sintomas mais evidentes, singulares, incomuns e próprios (característicos)
do caso de doença, pois na série de sintomas produzidos pelo medicamento
escolhido, é principalmente a estes que devem corresponder sintomas muito
semelhantes, a fim de que seja mais conveniente à cura. Os sintomas mais
gerais e indefinidos: falta de apetite, dor de cabeça, debilidade, sono
inquieto, mal-estar etc., merecem pouca atenção devido ao seu caráter vago, se
não puderem ser descritos com mais precisão, pois algo assim geral pode ser
observado em quase todas as doenças e medicamentos”. (Organon da arte de
curar, § 153) [9]
Dentre esta totalidade
de sintomas característicos e peculiares, Hahnemann classifica as
“alterações mentais e psíquicas” como aspectos de alta hierarquia na escolha do
medicamento, reiterando a importância e a complexidade da individualização no
êxito do tratamento homeopático para qualquer tipo de doença:
“Por conseguinte,
jamais se poderá curar de acordo com a natureza, isto é, homeopaticamente, se
não se observar, simultaneamente, em cada caso individual de doença, mesmo nos
casos de doenças agudas, o sintoma das alterações mentais e psíquicas, e se não
se escolher, para alívio do doente, entre os medicamentos, uma tal potência
morbífica que, a par da semelhança de seus outros sintomas com os da doença,
também seja capaz de produzir por si um estado psíquico ou mental semelhante”.
(Organon da arte de curar, § 213) [9]
Associando a
individualização medicamentosa à prescrição de “uma única substância
medicamentosa simples” por vez, Hahnemann se coloca terminantemente
contrário ao uso de mais de um medicamento homeopático simultaneamente
(premissa desprezada por muitos homeopatas), fundamentado na experimentação
patogenética homeopática que foi realizada com substâncias simples e únicas,
criticando o emprego de meios compostos (mistura de medicamentos ou complexos
homeopáticos) sem experimentação patogenética prévia:
“Em nenhum caso de tratamento é
necessário e, por conseguinte, não é admissível administrar a um doente
mais do que uma única e simples substância medicamentosa de cada vez. É
inconcebível que possa existir a menor dúvida acerca do que está mais de acordo
com a natureza e é mais racional: prescrever uma única substância
medicamentosa simples e bem conhecida num caso de doença ou misturar
várias diferentes. Na única, verdadeira, simples e natural arte de curar, a
homeopatia, não é absolutamente permitido dar ao doente duas substâncias
medicamentosas diferentes de uma só vez”. (Organon da arte de curar, §
273) [9] FRA Revista de Homeopatia 2011;74(1/2):
33-
“Como o verdadeiro
artista da cura encontra nos medicamentos simples administrados separadamente e
sem mistura tudo o que por ventura possa desejar [...], conforme reza o sábio
provérbio que diz ser um erro empregar meios compostos quando os simples são
suficientes, jamais lhe ocorrerá dar como medicamento mais do que uma
substância medicamentosa simples de cada vez e também por ter em vista que,
embora os medicamentos simples tivessem sido completamente experimentados quanto
a seus efeitos puros peculiares no estado de saúde dos Homens, é impossível
prever como duas ou mais substâncias medicamentosas compostas podem
mutuamente alterar e obstar a ação da outra sobre o organismo humano [...]”. (Organon
da arte de curar, § 274) [9]
Dessa forma, a eficácia
e a efetividade de um medicamento homeopático único e individualizado numa
determinada condição clínica estão diretamente relacionadas ao seu poder de ação,
de forma concomitante, nos distúrbios psíquico-emocionais e orgânicos da
individualidade enferma, assim como em outros aspectos gerais não relacionados
diretamente ao distúrbio específico.
Resumindo, o tratamento
homeopático adequado deve priorizar a individualização do medicamento único
segundo os sinais e sintomas mais peculiares e característicos do paciente, em
seus diversos aspectos (mentais, gerais e particulares), permitindo que para
uma mesma doença cada indivíduo possa vir a receber medicamentos únicos
distintos em momentos distintos, conforme as próprias suscetibilidades físicas,
psíquicas, emocionais, alimentares, climáticas, etc.
Vale ressaltar que este
processo de individualização medicamentosa necessita de um período de
acompanhamento regular e variável, em que as respostas às diversas
hipóteses medicamentosas (medicamentos únicos individualizados) são avaliadas
sucessivamente, ajustando-se os medicamentos, as doses e as potências
homeopáticas aos diversos aspectos idiossincrásicos do paciente. Até que se
atinja o medicamento ideal (simillimum), a substituição das drogas
alo-enantiopáticas em uso, desde que imprescindíveis ao equilíbrio das funções
vitais orgânicas, deve ser realizada segundo critérios éticos e seguros,
evitando-se as iatrogenias consequentes à possível ausência da ação terapêutica
homeopática. [61]
PESQUISA CLÍNICA EM HOMEOPATIA
Panorama geral
Em vista dos aspectos
singulares do modelo homeopático, que fazem da homeopatia uma prática
terapêutica individualizante por excelência, pode-se vislumbrar as
dificuldades encontradas na elaboração de desenhos de ensaios clínicos que
contemplem as premissas da metodologia científica clássica.
Numa primeira
metanálise publicada no British Medical Journal, Kleijnen et al. [62]
analisaram a qualidade metodológica de 107 ensaios clínicos homeopáticos
placebos-controlados, concluindo que apenas 22 trabalhos (20%) foram
considerados de qualidade metodológica satisfatória (escore mínimo de 55/100
pontos). Dentre estes 22 trabalhos, 15 (68%) mostraram eficácia do tratamento
homeopático frente ao placebo. Em vista desses resultados, concluíram haver
evidência positiva, mas não suficiente para se tirarem conclusões definitivas.
De forma análoga, numa
primeira metanálise publicada no The Lancet em 1997, Linde et al. [63]
realizaram uma revisão sistemática de 89 ensaios clínicos homeopáticos
placebos-controlados, concluindo que os resultados observados no tratamento
homeopático não eram efeitos-placebo (resultados 2,45 vezes superior da
homeopatia perante o placebo). Devido à quantidade insuficiente de ensaios
clínicos de uma mesma entidade nosológica para que metanálises específicas
fossem realizadas, os autores agruparam todos os tipos de trabalhos
homeopáticos na sua revisão, sendo criticados por terem adotado essa
metodologia.
Conforme discutimos
anteriormente, algumas premissas devem ser seguidas para que se atinjam os
resultados desejados no tratamento homeopático, estando na individualização
do medicamento segundo a totalidade de sintomas característicos do
paciente uma condição imprescindível ao desenho de estudos
epistemologicamente corretos. Dessa forma, para uma mesma doença, cada
indivíduo enfermo poderá receber medicamentos homeopáticos distintos, não
existindo “medicamentos particulares para condições clínicas específicas”.
[64,65]
Diversos ensaios
clínicos homeopáticos que desrespeitaram esta individualização do
tratamento, administrando o mesmo medicamento para diversos indivíduos
portadores de uma mesma doença, não mostraram resultados significativos
(exemplificado no emprego indiscriminado da Arnica montana para
processos inflamatórios) [66], ferindo a racionalidade científica do modelo
homeopático. Buscando avaliar a eficácia da homeopatia em estudos que priorizaram
a individualização do tratamento como padrão-ouro da epidemiologia clínica
homeopática, uma metanálise foi realizada com 32 ensaios clínicos
placebos-controlados, de qualidades metodológicas variáveis, sugerindo que o
tratamento homeopático individualizado é mais efetivo do que o placebo. [67]
Numa revisão crítica dos ensaios
clínicos homeopáticos controlados publicada no Annals of Internal Medicine,
Jonas et al. [68] relataram que os estudos clínicos e laboratoriais demonstram resultados
que contestam a racionalidade contemporânea da Medicina. Destacaram as três
revisões sistemáticas citadas anteriormente [62,63,67] como as que utilizaram
métodos de avaliação condizentes com a homeopatia, reportando efeitos
superiores do tratamento homeopático frente ao placebo. Descartando as
metanálises com metodologia questionável ou que menosprezaram as peculiaridades
intrínsecas ao modelo [66,69,70], realçaram as evidências científicas da
eficácia do tratamento homeopático nas alergias [71,72] e na diarréia infantil
[73], não encontrando respostas satisfatórias nos ensaios clínicos que
avaliaram a resposta homeopática frente à prevenção da cefaléia [74] e da
influenza [75]. Discorrendo sobre a falta de evidências conclusivas para
avaliar o tratamento homeopático em outras condições clínicas, defendem que a
homeopatia merece “uma oportunidade isenta de preconceitos para demonstrar o
seu valor, utilizando princípios baseados em evidências”.
Ensaios clínicos
placebos-controlados isolados evidenciaram a eficácia do tratamento homeopático
individualizado na enxaqueca [76], na fibromialgia [77], no transtorno do
déficit de atenção e hiperatividade [78,79], na prevenção das infecções do
trato respiratório superior [80], etc.
Como proposta
terapêutica individualizada e globalizante, a homeopatia pode acrescentar
eficiência e segurança à medicina convencional atuando de forma curativa e
preventiva, diminuindo as manifestações sintomáticas e a predisposição ao
adoecer, com baixo custo e efeitos colaterais mínimos. [81-85]
Importa ressaltar que a
semiologia homeopática clássica busca diagnosticar as diversas suscetibilidades
do enfermo (biológicas, climáticas, alimentares, psíquicas, emocionais, etc.)
com o principal objetivo de evidenciar sintomas característicos que contribuam
à seleção do medicamento homeopático individualizado. No entanto, permitindo ao
paciente expor suas idiossincrasias de forma detalhada, mobiliza aspectos
interiores não-específicos que, por si mesmos, podem trazer alívio para muitas
manifestações sintomáticas.
Associado ao efeito
placebo, o adicional de melhora deste efeito consulta (rapport effect) pode
dificultar a observação do efeito específico do medicamento homeopático no
curto prazo, favorecendo o incremento de resultados falso-positivos de acordo
às características influenciáveis da amostra e se o tempo de tratamento não for
suficiente para que a reação homeopática atinja sua plenitude. [86,87]
Os desenhos de ensaios
clínicos placebos-controlados convencionais encontram nessas particularidades
obstáculos suficientes para evidenciar a superioridade do tratamento
homeopático frente ao placebo [88,89], exigindo a incorporação de critérios
epidemiológicos condizentes com os aspectos epistemológicos do modelo em
questão.
Importância da individualização terapêutica na eficácia
clínica da homeopatia
A eficácia e a
efetividade do tratamento homeopático estão diretamente relacionadas ao grau
de similitude entre a totalidade dos sintomas característicos do paciente e
os sintomas despertados pelos medicamentos nas experimentações patogenéticas.
Em vista de a terapêutica homeopática empregar substâncias simples
ultradiluídas com potência de ação primária “infinitesimal”, ao contrário das
doses ponderais com potente ação patogenética e efeitos colaterais da
terapêutica convencional, os sintomas do medicamento único corretamente
selecionado devem apresentar grande similaridade com as características mais
peculiares e idiossincrásicas do paciente, a fim de que o “imponderável” efeito
primário do medicamento dinamizado consiga despertar uma reação vital ou
homeostática através do princípio da similitude terapêutica.
Por esses e outros
aspectos que Hahnemann e todos os seus seguidores enfatizaram como premissa
fundamental à boa prática clínica homeopática a “individualização
medicamentosa” e o “emprego de substâncias únicas e simples” (medicamento
único individualizado), aplicando o princípio da similitude na congruência
da totalidade de sintomas
característicos do binômio doente-doença com as manifestações patogenéticas das
substâncias únicas e simples que foram experimentadas em indivíduos humanos,
criticando o emprego de meios compostos (mistura de medicamentos ou complexos
homeopáticos) sem a experimentação patogenética prévia.
Alegando o intuito
explícito de estudar a relação dos efeitos clínicos do tratamento homeopático
com o efeito placebo, Shang et al. [90] desenvolveram um estudo comparativo
entre ensaios clínicos homeopáticos e alopáticos placebos-controlados,
publicado no The Lancet em 2005. Pareando 110 ensaios homeopáticos com
110 ensaios alopáticos segundo as mesmas doenças e os mesmos tipos de
resultados (efeitos específicos), os autores classificaram os estudos segundo
critérios de qualidade metodológicos clássicos (número de participantes
envolvidos, método de randomização, aplicação do método duplo-cego, tipo de
publicação, cálculo do odds ratio, etc.), utilizando a meta-regressão
como método de análise estatística, avaliando como os vícios ou erros
sistemáticos (vieses) na condução e na descrição dos estudos poderiam
interferir na interpretação final dos resultados.
Numa primeira análise
geral de todos os ensaios clínicos levantados (homeopáticos e alopáticos), a
maioria de baixa qualidade metodológica segundo os critérios clássicos
anteriormente citados, os autores observaram que tanto a homeopatia quanto a
alopatia mostraram-se eficazes perante o placebo, de forma análoga aos
resultados da metanálise publicada no The Lancet em 1997 [62].
Entretanto, quando os erros sistemáticos foram valorizados, selecionando para
análise apenas os estudos com alta qualidade metodológica segundo o critério
específico do número de participantes envolvidos (“oito ensaios clínicos
homeopáticos” versus “seis ensaios clínicos alopáticos”), os resultados
mostraram fraca evidência para um efeito específico dos medicamentos
homeopáticos (OR 0,88; IC 95% 0,65-1,19) e forte evidência para efeitos
específicos de intervenções convencionais (OR 0,58; IC 95% 0,39-0,85). Partindo
da premissa preconceituosa de que os efeitos específicos das ultradiluições
homeopáticas são “implausíveis”, pela dificuldade de explicá-los segundo os
parâmetros da pesquisa farmacológica dose-dependente, os autores concluíram que
os efeitos clínicos da homeopatia são efeitos placebo.
Como rege a
epidemiologia clínica, em estudos que visem comparar a eficácia de
racionalidades médicas distintas como a homeopatia e a alopatia, os critérios
de qualidade metodológica específica a cada modelo devem constar como premissas
fundamentais na descrição e na condução dos mesmos, a fim de que se reproduza
na pesquisa a realidade clínica (efetividade ou validade externa). Dessa
forma, os ensaios clínicos homeopáticos deveriam priorizar como critérios de
alta qualidade metodológica as seguintes premissas: individualização na
escolha do medicamento, das doses e das potências homeopáticas; período de
estudo suficiente para ajustar o medicamento à complexidade da individualidade
enferma; avaliação da resposta global e dinâmica ao tratamento com a aplicação
de instrumentos específicos (análise quali-quantitativa); etc.
Nessa metanálise
publicada no The Lancet em 2005 [90], esses critérios homeopáticos de
alta qualidade metodológica foram desprezados, pois apenas 16% dos ensaios
clínicos homeopáticos selecionados inicialmente (e nenhum dos oito estudos de
melhor qualidade metodológica clássica incluídos na segunda análise) respeitavam
a individualização na escolha do medicamento, principal premissa do modelo,
constituindo um viés ou erro sistemático de grande magnitude para a episteme
homeopática. A grande maioria dos ensaios clínicos homeopáticos selecionados
apresentava desenhos impróprios à clínica da individualidade, empregando
um mesmo medicamento (44%) ou uma mesma mistura de medicamentos (32%) para uma
queixa clínica comum a todos os pacientes.
Segundo as limitações
apresentadas [91], torna-se evidente que tanto essa publicação quanto o
editorial (“The end of homoeopathy”), assim como outras duas matérias críticas
publicadas na mesma edição do periódico, apresentaram o intuito implícito de
desacreditar a homeopatia [92]. Esse estudo enviesado, criticado em diversos
aspectos por pesquisadores e epidemiologistas [93-95], tem sido citado como
exemplo da ineficácia da homeopatia, apesar de ter desprezado a episteme
homeopática. Na verdade, o que ele provou, foi a “ineficácia do tratamento
homeopático não-individualizado”, que é praticado por muitos colegas
homeopatas.
Com esse exemplo,
frisamos a importância que deve ser dispensada ao desenho dos protocolos
clínicos homeopáticos, a fim de que satisfaçam a racionalidade científica do
modelo e possam ser avaliadas as verdadeiras possibilidades e limitações de sua
aplicação no tratamento das diversas enfermidades humanas.
Com o intuito de
aprimorar o desenho dos ensaios clínicos homeopáticos controlados elaborados
nas últimas décadas, propusemos em 2009 um modelo de ensaio clínico homeopático
misto (ensaio placebo-controlado seguido por ensaio aberto de longa duração,
com avaliações quali-quantitativas em todas as fases do estudo) [96], buscando
uma conciliação entre a epidemiologia clínica e as premissas homeopáticas, com
o intuito de suplantar a cristalização dogmática, estimular a criatividade e
aproximar os horizontes dessas racionalidades distintas.
CONCLUSÕES
Por estar fundamentado
em pressupostos heterodoxos ao conhecimento científico tradicional, o modelo
homeopático costuma receber críticas atrozes por parte daqueles que desconhecem
a sua racionalidade. Através da mídia ou no contato com colegas menos
esclarecidos, escutamos frases como: “os pressupostos homeopáticos são
argumentos pseudocientíficos”; “não existem evidências científicas confiáveis
que comprovem a eficácia do tratamento homeopático das doenças”; “o pessoal que
utiliza produtos homeopáticos nunca vai realizar trabalhos científicos para
estudá-los”; etc.
No intuito de
esclarecer a classe médica desconhecedora das peculiaridades do modelo
homeopático, nos propusemos nesse ensaio a discorrer sobre os pressupostos
homeopáticos e sua aplicação clínica, traçando paralelismos com a ciência
contemporânea que permitam, através de uma linguagem comum, aproximar ambas
racionalidades.
Para que se possa
atingir um grau de evidência desejável, com um incremento na produção
científica homeopática, novos experimentos laboratoriais e ensaios clínicos fazem-se
necessários, exigindo do meio acadêmico uma postura imparcial, isenta de
preconceitos, permitindo que pesquisadores homeopatas imbuídos do espírito
científico tenham oportunidades para desenvolver seus projetos. Por outro lado,
cabe ao homeopata, detentor do conhecimento deste importante arsenal
terapêutico, se despojar dos possíveis resquícios da mentalidade contracultural
existente, participando mais ativamente na divulgação e na expansão da
homeopatia, dedicando-se ao desenvolvimento de projetos nas áreas da
assistência, do ensino e da pesquisa universitária, a fim de que a informação
possa dissolver as barreiras seculares que afastam colegas da mesma profissão
empenhados em diminuir o sofrimento dos mesmos pacientes.
No desenvolvimento de
projetos em pesquisa básica ou fundamental, inúmeras tentativas devem ser
realizadas para que a substância dinamizada (ultradiluição) em teste possa ser
adaptada ao desenho de estudo proposto, pois a “informação homeopática” deve se
ajustar às sensibilidades individualizantes das espécies em estudo (animais,
vegetais, culturas de células, etc.) segundo parâmetros diversos
(individualização da potência da substância dinamizada, dos tempos de
tratamento e de resposta, etc). Na elaboração de propostas em pesquisa clínica,
devemos associar as premissas da epidemiologia clínica moderna às
particularidades do modelo homeopático (individualidade na escolha do
medicamento, período de tratamento suficiente para que se possa ajustar o
medicamento à complexidade enferma, avaliação da resposta global e dinâmica ao
tratamento, etc.), a fim de que ambos sistemas sejam contemplados.
Dessa forma, poderemos
minimizar as posturas preconceituosas que dificultam o diálogo e o entendimento
entre essas racionalidades médicas distintas, que podem e devem atuar de forma
concomitante e adjuvante no tratamento das inúmeras enfermidades humanas.
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FRA Revista de Homeopatia 2011;74(1/2): 33-56 Marcus Zulian TeixFonte:http://www.aph.org.br/revista/index.php/aph/article/view/61/79
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