Similia Similibus Curentur:
revisitando aspectos históricos da homeopatia nove anos depois
Similia Similibus Curentur: revisiting historical aspects of homeopathy nine years later
Anderson Domingues CorrêaI; Rodrigo Siqueira-BatistaII;
Luis Eduardo M. QuintasIII; Romulo Siqueira-BatistaIV
IProfessor do Centro Federal de
Educação Tecnológica de Química de Nilópolis – RJ. Rua Lucio Tavares, 1045,
Centro 26530-060 Nilópolis – RJ – Brasil. andersondomcor@yahoo.com.br
IIProfessor de clínica médica, nos cursos de medicina e de
filosofia, e de ciência da computação, Fundação Educacional Serra dos Órgãos
Av. Alberto Torres, 111, Alto – Várzea 25964-000 Teresópolis – RJ –
Brasil anaximandro@hotmail.com
IIIProfessor do Departamento de Farmacologia Básica e Clínica,
Centro de Ciências da Saúde, UFRJ Cidade Universitária – Ilha do Fundão –
Edifício do CCS, Bloco G 21949-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil lquintas@farmaco.ufrj.br
IVProfessor de filosofia, Curso de Ciência da Computação, (FESO).
Av. Alberto Torres, 111, Alto – Várzea 25964-000 Teresópolis – RJ –
Brasil clinamen1@yahoo.com.br
ABSTRACT
O presente texto retoma as discussões iniciadas no artigo "Simila
Similibus Curentur: notação histórica da medicina homeopática" (1997),
revendo desvios conceituais de outrora e aprofundando o debate histórico sobre
as origens da homeopatia. A investigação se faz a partir de duas fontes
principais: os textos antigos – Corpus Hippocraticum, obras de
Galeno, Paracelso e Hahnemann – e os estudos elaborados por comentadores.
Passados nove anos, ocorreu uma paulatina revisão dos conteúdos previamente
abordados, retificação de alguns pontos e aprofundamento das discussões, permitindo
um significativo amadurecimento das posições manifestas outrora. A homeopatia,
'nascida' no século XVIII, enraíza-se nas próprias origens da medicina
ocidental, ao mesmo tempo em que busca florescer neste século XXI, como
especialidade que deseja ser autônoma, mas que necessita da legitimação da
ciência médica 'tradicional'.
Palavras-chave: Homeopatia; Hipócrates;
história da medicina; Hahnemann.
ABSTRACT
Revising
earlier conceptual misconstructions and delving deeper into the historical
debate on the origins of homeopathy, this text returns to discussions initiated
in the article "Simila Similibus Curentur: historical notes on
homeopathic medicine" (1997). Research has been based on two main sources:
ancient texts – Corpus Hippocraticum and works by Galen,
Paracelsus, and Hahnemann – and the studies of commentators. In the nine years
since original publication, previously explored content has undergone gradual
revision, some points have been corrected, and discussions have developed
further, lending substantially greater maturity to earlier positions. 'Born' in
the eighteenth century yet rooted in the very origins of Western medicine,
homeopathy is endeavoring to blossom in the twenty-first century as a specialty
that wants to be autonomous but that needs the legitimacy of 'traditional'
medical science.
Keywords: homeopathy; Hippocrates; history of
medicine; Hahnemann.
Cale-se,
homem! Um fogo incendeia outro fogo;
Uma pena é minorada com o sofrimento de outra;
Roda até a vertigem e ficarás sereno em direção contrária.
Uma dor desesperada cura-se com outro languir
Apanha em teus olhos alguma nova infecção
E o violento veneno do mal antigo desaparecerá.
William
Shakespeare
A homeopatia é um sistema médico possuidor de racionalidade
própria, distinta da medicina alopática – esta última, no Ocidente, considerada
a corrente tradicional (Luz, 1996). Em termos gerais, seus principais aspectos
incluem o repertório doutrinário de inspiração vitalista, o processo
diagnóstico centrado no enfermo – e não na doença – e a existência de uma
abordagem terapêutica lídima, baseada na lei dos semelhantes – Similia
Similibus Curentur (Eizayaga, 1992; Heinze, 1996).
A despeito de ser um paradigma estabelecido no século XVIII por
Samuel Hahnemann, a história da homeopatia pode ser recontada a partir da
medicina hipocrática, tomando como horizonte a conhecida distinção terapêutica
estabelecida pelos artífices de Cós: a "cura pelos contrários" (Contraria
Contrariis Curentur) – posteriormente consolidada por Galeno (129-199 d.C.)
e Avicena (980-1037), tornando-se a base da alopatia – e a "cura pelos
semelhantes" (Similia Similibus Curentur), reavivada no século XVI
por Paracelso (1493-1591), e trabalhada de forma original por Hahnemann, anos
depois (Corrêa & Siqueira-Batista, 1996; Corrêa et al., 1997; Dudgeon,
1994a, 1994b).
Este manuscrito representa uma retomada do ensaio "Similia
Similibus Curentur – Notação Histórica da Medicina Homeopática",
publicado em 1997 (Corrêa et al., 1997), tendo por escopo a atualização das
discussões fomentadas outrora, corrigindo-se equívocos e aprofundando os
conceitos. Para percorrer tal caminho serão (1) enfocados os matizes da
medicina helênica arcaica – pressuposto para o entendimento do processo de
separação estabelecido entre homeopatia e alopatia, hoje métodos totalmente
distintos de tratamento, mas que tiveram a mesma 'inspiração', nos trabalhos de
Hipócrates de Cós –; e (2) averiguada a recorrência da similitude e
da cura pelos opostos nas concepções dos três autores mencionados – Galeno,
Avicena e Paracelso. Tal preâmbulo permitirá a incursão no "mundo"
propriamente dito da Homeopatia.
As origens da medicina homeopática: a Escola de Cós
As raízes da homeopatia podem ser buscadas no saber-fazer médico
da Escola de Cós, com a qual ela se formaliza na tradição médica do Ocidente.
Até o século V a.C., aqueles que atuavam como médicos – os asclepíades,
descendentes de Asclépio, o deus da medicina –, empregavam procedimentos
mágicos – interpretação de sonhos, investigação de premonições e outros –,
visando restabelecer a saúde dos enfermos (Siqueira-Batista, 2003a). De fato, a
obra de Hipócrates (460-350 a.C.) representa um marco na medicina ocidental,
por sua decisiva participação na (1) consolidação de um método de observação
clínica, o qual ainda se encontra vivo na prática médica hodierna; (2)
elaboração de um corpo doutrinário capaz de fornecer explicações para os
processos de adoecimento; (3) teorização acerca dos tratamentos possíveis e
organização do repertório terapêutico vigente, ainda que divergente em relação
a outras escolas médicas suas contemporâneas, como Cnidos; e (4)
estabelecimento de uma ética que permaneceu hegemônica até a metade do século
passado (Frias, 2001; Schramm, 2002; Siqueira-Batista, 2003a). Vejam-se
brevemente, a seguir, os três primeiros aspectos, focos da discussão em pauta.
O método hipocrático de observação clínica estruturava-se
a partir da coleta de informações – pela história do homem que sofre e pelo
exame do seu corpo,1 utilizando
para isto a visão, a audição, o tato, o olfato e o paladar –, as quais deveriam
ser coligidas, possibilitando a elaboração de um diagnóstico (äéáãíùóôéêòí) –
"caracterização" da doença – e do prognóstico (ðñïãíùóôéêòí) –
permitindo antever o desfecho, a evolução, da moléstia (Cornford, 1989;
Hipócrates, 1992a; Siqueira-Batista, 2004). É necessário observar os enfermos para
que se adquira perspicácia em identificar os quadros nosológicos, pressuposto
para tratá-los (Rebollo, 2003; Siqueira-Batista, 2003a). A observação e a
experiência são, assim, os grandes fios condutores do método de Cós (Frias,
2001; Hipócrates, 1992a; Siqueira-Batista et al., 2004).
Do ponto de vista da fisiopatologia, um grande número de conceitos
e idéias compõe o horizonte doutrinário da medicina grega
antiga. Podem ser mencionadas as idéias acerca dos poros – bases fisiológicas
da respiração e da percepção – e as teses referentes ao equilíbrio dos humores,
as quais compõem a base do processo saúde-doença em Hipócrates (Hipócrates,
2002; Laín Entralgo, 1987). Uma das teorias humorais presentes no Corpus
Hippocraticum estabelece que o corpo humano é formado por sangue, flegma, bile
amarela e bile negra (Hipócrates, 1992b), os quais
devem se manter em equilíbrio para que se estabeleça e se perpetue o estado
denominado saúde, como o afirmado pelo autor do tratado A
Natureza do Homem:
O corpo do homem é constituído por sangue, flegma, bile amarela e
bile negra; estes fazem a natureza de seu corpo e através deles se sente dor ou
se tem saúde. Ele goza de saúde perfeita quando esses elementos são devidamente
proporcionais em composição, poder e volume e quando eles estão perfeitamente
misturados, juntos. (Hipócrates, 1992b, p. 11)
A mistura, a proporção e a quantidade dos humores são
determinantes da saúde física do homem. Nas situações em que há predomínio de
um dos humores sobre os demais – o que geralmente se dá em
certo(s) local(is) do corpo –, o processo patológico se instala,2 levando
ao adoecimento do indivíduo (Frias, 2001; Frias, 2002; Hipócrates, 1992b;
Hipócrates, 1992c). É interessante pontuar a semelhança desta idéia com o
pensamento do filósofo pré-socrático Anaximandro de Mileto (Kirk et al., 1994;
Schüler, 2002; Siqueira-Batista, 2003b), como o discutido em outra oportunidade
(Siqueira-Batista, 2003a).3 A
'injustiça' de qualquer dos humores também gera um
desequilíbrio, manifesto como doença. Isto se apõe ao reconhecimento da
existência de dois conceitos bastante recorrentes nas explicações dos fenômenos
fisiológicos e patológicos na medicina hipocrática: a isomoiria (éóïìïéñßá
) e a compensação (timwría) (Jaeger, 1995). O primeiro
termo refere-se à concepção de que uma igualdade de 'forças', sem predomínio
violento de uma sobre as outras, traz a harmonia necessária à perpetuação da
saúde. A timwría relacionar-se-ia à idéia de que o estabelecimento de uma
doença seria conseqüente a uma espécie de compensação – ou
reparação, indenização – desencadeada pela supremacia de uma
força – ou elemento – sobre as demais.
As condutas terapêuticas são bastante variáveis
nos textos médicos antigos, o que se deve, provavelmente, à diversidade dos
autores. A idéia básica seria a restauração de uma medida oculta – a harmonia –
que, uma vez desequilibrada, torna-se expressa como adoecimento. De um modo
geral, os médicos hipocráticos acreditavam no poder curativo da própria öýóéò
(natureza) e, por conta disto, muitas vezes evitavam intervenções na história
natural das enfermidades, tal qual o descrito no Epidemias VI:
As naturezas são os médicos das enfermidades. A natureza encontra
por si mesma os caminhos... Bem instruída por si mesma, sem aprendizagem, faz o
que deve ser feito. (Hipócrates, 1839-1861, p. 314)
Tal princípio passou a ser reconhecido como natura
medicatrix – ou "cura pela natureza" –, instituindo-se que
esta é capaz de restabelecer a saúde do doente, cabendo ao médico imitá-la
durante o tratamento, a fim de reconduzir o enfermo a um perfeito estado de
equilíbrio. Para isto era prescrita, quando estritamente necessário, uma dieta adequada,
entendendo-se aqui por dieta todo o regime de vida do homem,
com especial atenção à ordenação dos alimentos e a moderação dos esforços
físicos impostos ao corpo. São também terapêuticos o ar puro, os banhos de sol,
a ginástica, as massagens, as sangrias moderadas, os purgativos suaves e os
eméticos. Em relação a estes dois últimos – purgativos e eméticos – o sentido
básico era 'eliminar' – ou seja, extrair – os humores excessivos através das
fezes, vômitos, urina e suores, o que era conhecido como catarse; com esta
finalidade eram usados, geralmente, o heréboro negro (purgante) e o heréboro
branco (emético). Outros componentes empregados com fins terapêuticos incluíam
enxofre, chumbo, água do mar, mandrágora, coriandro, ópio, beladona, salsa,
meimendro, loureiro, lótus, incenso, aipo, azeite, linho, cebola silvestre,
cortiça e raiz de granado, manjericão, farinha de trigo, vinho, vinagre frio e
quente, leite de cabra, de vaca e de jumenta, além do alcatrão – empregado como
anti-séptico no tratamento de feridas infectadas (Corrêa et al., 2003;
Hipócrates, 1998).
Além da concepção natura medicatrix, outros dois
princípios norteadores da terapêutica são encontrados no Corpus
Hippocraticum:
(1) Contraria Contrariis Curentur – a chamada lei
dos contrários, em que os sintomas são tratados diretamente com coisas
contrárias a eles; sobejam exemplos de indicações dos contrários para o
tratamento das mais diferentes condições no Corpus Hippocraticum (Hipócrates,
1839-1861; Laín Entralgo, 1987).
(2) Similia Similibus Curentur – a lei dos
semelhantes, segundo a qual a moléstia poderia ser extinta pela aplicação de
'coisas' suas semelhantes, tal qual o descrito no tratado Da Doença
Sagrada: "A maior parte [das enfermidades] são curáveis pelo mesmo que
as produz, porque o que para uma coisa é alimento, é corrupção para a
outra" (Hipócrates, 1992c, p. 314).
O médico hipocrático entendia que as duas modalidades de
tratamento eram eficazes no restabelecimento da saúde; portanto, a lei
dos contrários e a lei dos semelhantes não se opunham
em sua arte. O enfermo necessitaria, outrossim, ser tratado de forma
abrangente, enfocando-se o homem e não a moléstia.
Estas conjecturas não são capazes, obviamente, de levar à idéia de
uma 'importação' hahnemaniana da lei dos semelhantes de origem hipocrática
(Abreu, 1936). Dizer isto representaria o mesmo que estabelecer que a moderna
teoria atômica é uma continuação – linear – do atomismo
antigo, o que está muito próximo do absurdo (Siqueira-Batista et al., 2000).
Entretanto, o conceito de cura pelos semelhantes já 'ressoava'
na Antigüidade, brotando em novas cores nas concepções terapêuticas de
Hahnemann (Laín Entralgo, 1987). Esta ressalva é da maior importância, uma vez
que, na primeira versão deste ensaio, tal formulação teórica não havia sido
trabalhada com a necessária clareza.
Galeno e Avicena
Galeno, no século II, foi o maior comentador de Hipócrates na
Antigüidade, tendo escrito mais de quatrocentos tratados (Universidade Católica
do Chile, 2004). Suas doutrinas médicas, inspiradas nos ensinamentos dos
asclepíades de Cós – mas assinaladas por grande originalidade –, prevaleceram
hegemônicas na medicina ocidental por aproximadamente 1.500 anos.
Entre as principais obras de Galeno destacam-se (Galeno, 1997;
Garrison, 1966):
(1) |
Dissertações Anatômicas –
baseada na dissecação de animais, é obra repleta de descrições excelentes
(mormente sobre o sistema locomotor e o sistema nervoso, como no caso dos
nervos cranianos), mas, também, de informações errôneas acerca das vísceras
abdominais; |
(2) |
Da Conservação da Saúde –
no qual divide a medicina em higiene e terapêutica,
ou seja, a arte de prevenir as doenças (manter-se saudável) e o mister de
tratá-las; |
(3) |
os textos sobre cirurgia – haja vista sua grande
experiência como médico dos gladiadores; |
(4) |
os escritos sobre fisiologia – os quais trazem a
concepção vitalista dos três espíritos: o
espírito animal, localizado no cérebro, o vital ,
no coração, e o natural, no fígado (estes espíritos e o sangue
distribuem-se no interior das artérias e nervos, em um complexo mecanismo de
fluxo e refluxo, cabendo ao coração o aquecimento – órgão do calor – e aos
pulmões o resfriamento – órgãos do frio); |
(5) |
os escritos sobre patologia, nos quais é feita uma
bela síntese das concepções humorais hipocráticas com seus pressupostos
animistas, como substrato para a explicação do processo saúde-doença. |
As enfermidades e os agentes medicinais, para Galeno, eram
classificados em quatro 'tipos': frios, quentes, úmidos e secos.
A partir deste entendimento, o autor indicava a cura pela utilização das
'forças' opostas, devendo-se administrar, por exemplo, um medicamento frio para
o tratamento de uma doença quente (Galeno, 1997). Deste modo,
torna-se reatualizada a cura pelos contrários estabelecida por
Hipócrates.
As idéias galênicas ganharam grande ressonância na medicina antiga
e medieval, tendo influenciado decisivamente a obra de 'Abu 'Ali al-Hussain ibn
'Abd Allah ibn al-Hassan ibn 'Ali ibn Sina – Avicena, o Príncipe dos Médicos –,
considerado um dos maiores sábios do Islã, reconhecido principalmente por seu
trabalho filosófico muito influente no século XIII, cuja grande 'inspiração' é
aristotélica e neoplatônica (Gilson, 1998; Pereira, 2005). Para Avicena, o
universo compõe-se de essências – ou naturezas – que constituem o objeto
próprio do conhecimento metafísico, cabendo à filosofia o alcance da verdade
(Avicena, s.d.; Gilson, 1998).
Nascido em 980, Avicena era bastante conceituado por seu talento
como médico já aos 16 anos, tendo sido um dos grandes difusores da obra de
Galeno (Avicena, s.d.). Atribui-se a Avicena mais de duzentas obras, das quais
uma das mais importantes é o Kitab al-Shifa (Livro da Cura),
composto por dezoito volumes – os quais abrangem metafísica, matemática,
psicologia, física, astronomia e lógica. No campo da medicina, tornou-se
célebre o seu al-Quanun (Cânon), distribuído em cinco
volumes, os quais abordam (Avicena, s.d.):
Volume I – os princípios gerais da medicina;
Volume II – as formas segundo as quais se torna possível
determinar a natureza dos remédios (incluindo uma lista com 760 produtos
farmacêuticos);
Volume III – etiologia, sintomas, diagnóstico, prognóstico e
tratamento das moléstias;
Volume IV – abordagem das enfermidades de um modo geral;
Volume V – prescrições para as diversas doenças.
Avicena reconheceu a natureza contagiosa da gripe e da
tuberculose, a possibilidade de transmissão de doenças através da água e da
terra, tendo descrito a infecção pelo helminto Dracunculus medinensis –
causador da dracunculíase (Siqueira-Batista et al., 2001) – e o diabetes mellitus,
até mesmo relatando o gosto adocicado da urina nesta condição (Garrison, 1966).
No âmbito da terapêutica, retomou vários dos pontos da medicina galênica –
"cura pelos contrários" –, perpetuando tais ensinamentos ao longo de
toda a Idade Média (Avicena, s.d.).
Paracelso
No século XVI a medicina galênica era ensinada na maioria das
faculdades de medicina. Nesse período, várias epidemias assolaram a Europa,
havendo baixa expectativa de vida para as populações. A utilização de técnicas
terapêuticas como sangrias, administração de vomitivos, purgativos e suadores,
entre outras, era largamente aceita, a despeito de terríveis malefícios por
vezes associados, reconhecíveis já naquela época (Gordon, 1996).
Nesse contexto surgem as inovadoras idéias de Aureolus Phillippus
Teophrastus Bombastus von Hohenheim, o Paracelso (1493-1541), claramente
contrapostas aos vigentes ensinamentos de Galeno e Avicena (Corrêa &
Siqueira-Batista, 1996). Paracelso acreditava que os organismos eram
possuidores de uma anima – princípio vital ignoto e arcano –
instância capaz de garantir a perpetuação da vida (Paracelso, 1973). Retoma
aspectos da medicina hipocrática, ao considerar o homem como um todo integrado
– constituído de mente e corpo – em harmonia com o cosmo, e ao se agarrar ao
aforismo primun non nócere – primeiro não fazer o mal –, base
do arcaico princípio de não-maleficência, presente na ética do mestre de Cós
(Almeida & Schramm, 1999). Ademais, aplicou princípios da astrologia às
concepções médicas, perspectiva cujas raízes podem ser buscadas na cultura
helênica (Siqueira-Batista, 2003b), especialmente na fisiologia platônica
apresentada no Timeu (Platão, 1956; Siqueira-Batista &
Schramm, 2004) e na própria medicina hipocrática (Hipócrates, 1992d):
Há observações que ajudam a prever como será o ano, se salubre ou
insalubre. Se não houver nenhuma alteração nos sinais que acompanham o poente e
o levante dos astros, se as chuvas caírem no outono, se o inverno for moderado,
nem muito ameno nem muito frio, se durante a primavera e o verão as chuvas
seguirem a ordem dessas duas estações, naturalmente o ano será muito saudável.
Ao contrário, quando a um inverno seco e boreal suceder-se uma primavera
chuvosa e austral, o verão trará necessariamente febres, oftalmias e
disenterias ... Se o inverno for austral chuvoso e ameno, e a primavera boreal,
seca e fria, as mulheres que estiverem grávidas e que deverão dar à luz na
primavera abortarão, e aquelas que chegarem ao termo, trarão ao mundo crianças
fracas e doentias que morrerão imediatamente ou que viverão fracas e doentes.
Tais são os acidentes próprios das mulheres. O restante da população estará
sujeito às disenterias e às oftalmias secas; algumas pessoas apresentarão
defluxões na cabeça e no pulmão. (Hipócrates, 1992d, p. 99-101)
Paracelso fez inúmeras contribuições à medicina e à química,
introduzindo inúmeros medicamentos compostos por substâncias inorgânicas e
orgânicas, alguns dos quais utilizados ainda hoje, como o ferro (empregável na
correção da anemia ferropriva). Mais precisamente neste horizonte – a
terapêutica – é que se estabelece o grande fosso entre Paracelso e a medicina
de seu tempo, chegando ao píncaro de atear fogo aos tratados de Galeno e
Avicena. Alguns de seus pressupostos terapêuticos incluíam (Corrêa &
Siqueira-Batista, 1996; Dudgeon, 1994b; Paracelso, 1973; Vanin, 1994):
(1) |
indicação de tratamentos mais 'brandos' – evitando
sangrias e vomitórios – para as diferentes moléstias; |
(2) |
oposição ferrenha à "cura pelos
contrários", assim demarcada: "Esta é a verdade: quem emprega o
frio para o calor, a umidade para a secura, não entende a natureza da
doença" (Paracelso, apud Dudgeon, 1994b, p. 13); |
(3) |
compreensão de que uma enfermidade poderia ser
convenientemente tratada pelos semelhantes, através da prescrição de fármacos
dirigidos ao controle dos vários sinais e sintomas apresentados pelo
paciente: "O que produz icterícia também cura a icterícia e todas as
suas espécies. De maneira igual, o remédio que curará a paralisia deve
proceder daquilo que a causa; e nesse sentido agimos de acordo com o método
de cura pelos arcanos" (Paracelso, apud Dudgeon, 1994b, p. 13). Na
verdade, Paracelso crê que a enfermidade se localiza em um órgão específico,
de modo que a utilização de algo na natureza (o arcano) que se 'remeta' a
esse órgão – de tal modo que seja similar a ele – é o pressuposto fundamental
para o processo de cura: "As ervas medicinais são órgãos; esta é um
coração, aquela um fígado, esta outra um baço. Não direi que todo o coração é
visível ao olho como um coração, mas é um poder e uma virtude equivalente ao
coração" (Paracelso, apud Dudgeon, 1994b, p. 13). |
(4) |
introdução do conceito de posologia, desabonando a
prática de seus contemporâneos de ministrar quantidades maciças de drogas aos
pacientes, cujo efeito, muito usual, era a intoxicação. Paracelso acreditava
que as drogas deveriam ser administradas não pela quantidade, mas,
principalmente, por suas características; |
(5) |
utilização de novas técnicas para o preparo de
medicamentos, baseando-se nos conhecimentos de alquimia; |
(6) |
confirmação dos resultados da terapêutica através da
observação e da 'experimentação' em pessoas doentes. |
Como se verá adiante, há grande semelhança entre os sistemas
médicos elaborados por Paracelso e por Hahnemann, embora este último jamais
tenha feito referência ao primeiro.
A obra de Hahnemann
O criador da Homeopatia, Christian Frederich Samuel Hahnemann,
nasceu no dia 10 de abril de 1755 na pequena cidade de Meissen, no Eleitorado
da Saxônia, Alemanha (Corrêa, 1995). Seu pai era pintor de porcelana, não
possuindo uma boa situação financeira.
Em 1775, Hahnemann vai para Leipzig, onde assiste às aulas na universidade.
Para custear os estudos, traduz livros médicos do inglês para o alemão e
leciona outros idiomas. Apesar de a Universidade de Leipzig ser considerada um
local de excelência, não possuía instalações para o treinamento clínico que
tanto o encantava e, por isso, após dois anos de estudos, partiu para Viena com
a intenção de praticar a medicina. Durante sua estada adquiriu experiência com
o famoso Dr. Von Quarin, o médico da corte. Seus recursos possibilitaram que
ele permanecesse menos de um ano, quando então foi convidado pelo governador da
Transilvânia para catalogar sua biblioteca e classificar sua coleção de moedas.
Hahnemann passou a ser também uma espécie de conselheiro médico e a dar
consultas, apesar de ainda não estar formado. Ficou na Transilvânia por dois
anos, até que conseguiu economizar dinheiro suficiente para matricular-se na
Universidade de Erlangen, em 1779, conseguindo o diploma de médico aos 24 anos.
Hahnemann clinicou durante algum tempo, mas mostrou-se
insatisfeito, a exemplo de Paracelso, com os resultados obtidos com a medicina
tradicional, optando por ganhar a vida traduzindo livros médicos. Em 1790, aos
35 anos, durante a tradução da Matéria Médica de William
Cullen (1710-1790), ficou intrigado com as explicações dadas por este para os
efeitos terapêuticos da China officinallis (quina) (Corrêa,
1995). Decidiu, então, experimentar a quina, observando em si mesmo
manifestações bastante semelhantes às apresentadas por pacientes com malária.
Concluiu, deste modo, que a quina era utilizada no tratamento da malária porque
produzia sintomas semelhantes em pessoas saudáveis. Em última análise, este foi
um dos alicerces de seu ordenamento empírico e 'experimental', uma vez que,
para Hahnemann, a observação genuína dos efeitos de um dado medicamento
pressupõe que ele seja administrado às pessoas sãs, ao contrário do postulado
por Paracelso (Dudgeon, 1994a e 1994b). Animado por esse primevo resultado,
utilizou também beladona, digital, mercúrio e outros compostos, obtendo
resultados similares. Apoiado em suas evidências experimentais e no pensamento
hipocrático – Similia similibus curentur – (Corrêa, 1995;
Dudgeon, 1994b; Vanier, 1994), Hahnemann concebeu uma nova forma de tratamento,
embasada na cura pelos semelhantes.
A partir desse momento Hahnemann começou a pesquisar a "lei
dos semelhantes". Em 1796 publicou o Ensaio sobre um novo
princípio para averiguar os poderes curativos das substâncias medicinais,
no qual fazia um apanhado sobre seus experimentos e relatava alguns fatos
observados anteriormente por outros autores (Hahnemann, 1796). Nesse mesmo ano
retornou à atividade médica, tratando seus pacientes pela aplicação de suas
novas idéias. O ano de 1796 ficou conhecido como marco do início da Homeopatia.
Estabelecem-se, portanto, os fundamentos da medicina homeopática,
os quais divergem em essência dos conceitos terapêuticos alopáticos da medicina
tradicional. Vale ressaltar que as concepções hahnemanianas reviveram muito da
tradição hipocrática – atenção ao regime alimentar e importância dos fatores
climáticos, ecológicos e psicológicos no processo saúde-doença (Danciger, 1992;
Eizayaga, 1992; Weiner, 1994).
Hahnemann postulou a existência de uma energia vital,
a qual possibilita, ao organismo, o estabelecimento de reações aos mais
variados estímulos ambientais. O homem é compreendido como uma unidade composta
por corpo, alma e consciência, capaz de se manter sã quando todas as sensações
e reações se equilibram de forma harmônica (Espinosa, 1999). Isto posto, nas circunstâncias
em que há distorções nessa harmonia o indivíduo se torna doente, sofrendo de um
padecimento que lhe é próprio (Corrêa & Quintas, 1994; Eizayaga, 1992;
Hahnemann, 1810; Teixeira, 1996; Teixeira, 2000):
Quando o Homem adoece é somente porque, originalmente, esta força
de tipo não material, presente em todo o organismo, esta força vital de
atividade própria (princípio vital) foi afetada através da influência dinâmica
de um agente morbífico, hostil à vida; somente o princípio vital afetado em tal
anormalidade pode conferir ao organismo as sensações adversas, levando-o,
assim, a funções irregulares a que damos o nome de doença, pois este ser
dinâmico, invisível por si mesmo e somente reconhecível nos seus efeitos no
organismo, fornece sua distonia mórbida somente através da manifestação da
doença nas sensações e funções... (Hahnemann, 1810, § 11)
O desequilíbrio dessa energia vital promove uma
'disfunção' orgânica, a qual faz o homem adoecer. Não faz sentido, portanto,
falar-se de uma doença em si mesma, mas sim de pessoas enfermas (Eizayaga,
1992; Heinze, 1996).
Por conhecer bem as modalidades terapêuticas de sua época,
Hahnemann rapidamente se deu conta de que muitas plantas e substâncias eram
tóxicas, produzindo freqüentemente efeitos adversos importantes – tal qual
observado por Paracelso (Corrêa & Siqueira-Batista, 1996). Deste modo,
passou a diluir ao máximo os medicamentos, intentando que sua toxicidade fosse
diminuída. Os resultados da nova terapêutica foram bastante promissores e, por
conta disso, o médico alemão decidiu voltar a clinicar, em caráter definitivo.
Conta a história que nessa época aconteceu o que alguns consideram
um "triunfo do acaso e da inteligente observação", que impulsionou
fortemente o estudo da homeopatia. Hahnemann possuía uma pequena carroça com a
qual percorria o interior do país para tratar a população. Ele começou a
observar, entretanto, que os pacientes que moravam mais longe eram mais eficaz
e rapidamente curados, e associou esse dado ao movimento que a carroça fazia ao
passar pelos buracos da estrada. Passou então a sacudir os medicamentos
(dinamizar) e basear o preparo destes em dois preceitos: diluição e dinamização.
A partir desse momento, os resultados obtidos foram muito positivos e a
Medicina Homeopática começou a se difundir e a ganhar popularidade.
Em 1810, publicou a primeira edição do Organon da arte de
curar (Hahnemann, 1810), livro que teve outras cinco edições (a sexta
edição só seria publicada em 1921, muitos anos após sua morte). O Organon passou
a ser considerado o livro principal da Homeopatia. Nessa obra, Hahnemann cita
440 médicos que utilizaram o princípio dos semelhantes, desde Hipócrates até os
seus dias. Em 1811 publicou o primeiro volume da Matéria médica pura,
obra que foi concluída no ano seguinte (ao todo, composta por seis volumes).
A partir de 1812 começou a lecionar na Universidade de Leipzig
para estudantes, admiradores e antigos médicos. Para tanto, teve que defender
uma tese na Faculdade de Medicina, fazendo uma magistral apresentação sobre a
utilização do Veratrum album para um auditório lotado, demonstrando
profundo conhecimento da história do pensamento médico. Após a dissertação, a
banca constituída por inúmeros adversários de sua doutrina teve de admitir sua
grande erudição e aprová-lo sem ressalvas. Conseguiu um grande número de
seguidores e, em 1828, publicou outra grande obra intitulada Doenças
Crônicas (Corrêa et al., 1997). Nessa época a Homeopatia já havia
alcançado várias outras regiões do mundo.
Hahnemann viveu em Paris de 1835 até sua morte, aos 88 anos, no
dia 2 de julho de 1843, após o que foi reconhecido por inúmeros médicos que
antes se opunham aos seus ensinamentos. Em Leipzig, local onde sofreu severas
críticas e perseguições, médicos e farmacêuticos ergueram, em 1851, um
monumento de bronze em sua homenagem.
Contribuições ulteriores
Muitos foram os seguidores de Hahnemann que, após sua morte, deram
continuidade à sua obra. Sem dúvida, os que mais contribuíram para a evolução
dos fundamentos da Homeopatia foram Hering e Kent (Corrêa et al., 1997; Kent,
1926).
Constantin Hering nasceu em 1º de janeiro de 1800, na Saxônia
(Alemanha), e ingressou em 1817 na Academia de Cirurgia de Dresden e, em 1820,
na Faculdade de Medicina de Leipzig. Em 1833 foi morar nos Estados Unidos, onde
fundou vários institutos homeopáticos, lecionou e escreveu uma grande obra
sobre a Matéria médica composta por dez volumes, mantendo,
durante muitos anos, correspondência com Hahnemann – as cartas resultantes
foram posteriormente publicadas. Hering chegou a assistir às conferências
proferidas por Hahnemann na Faculdade de Medicina de Leipzig e foi o criador de
uma lei de tratamento que leva seu nome – "Lei de Hering" –, exposta
pela primeira vez pelo próprio Hahnemann em uma das edições de seu Doenças
crônicas, em 1845 (Corrêa et al., 1997). Morreu em 1880, tendo adquirido
grande prestígio no meio médico.
James Tyler Kent, nasceu em 31 de março de 1849, em Nova York
(Estados Unidos) e faleceu em 1916. Escreveu vários livros que são utilizados
até a atualidade, tais como Repertório, Matéria médica e Filosofia
homeopática, entre outros que foram traduzidos para diversas línguas, sendo
reimpressos até hoje (Kent, 1926). Criou várias técnicas e conceitos, além de
um novo modo de pensamento da homeopatia, o qual angariou muitos adeptos, os
quais se organizaram em torno da Escola Kentiana.
Homeopatia no Brasil
A chegada da medicina homeopática ao Brasil ocorreu em 1841,
quando Benoit-Jules Mure – que passou a ser conhecido como Bento Mure – fundou
a Escola Homeopática do Rio de Janeiro (Corrêa et al., 1997). No ano seguinte
cria o Instituto Homeopático de Saí (Santa Catarina) e a primeira farmácia
homeopática do Rio de Janeiro (fundada por Bento Mure e João Vicente Martins).
Em agosto de 1843, Mure juntamente com Vicente José Lisboa, institui o
Instituto Homeopático do Brasil, o primeiro consultório homeopático do Rio de
Janeiro, e a Botica Homeopática Central, a primeira farmácia homeopática do
Brasil, ambos com o objetivo de difundir a homeopatia e atender aos menos
favorecidos (Nobre, 1942).
Em 1845 foi criada a Escola Homeopática do Brasil – primeira
escola de formação homeopática –, sob a direção de João Vicente Martins, a
qual, em 1847, é substituída pela Academia Médico-Homeopática do Brasil.
Bento Mure recebeu severas críticas no meio médico brasileiro, por
tentar difundir idéias totalmente desconhecidas. Desgostoso com a situação,
optou por sair do país sete anos após sua chegada, deixando, entretanto, a
semente lançada – fez muitos discípulos que continuaram seu trabalho. Vários
foram os autores brasileiros que se tornaram adeptos da Homeopatia durante sua
implantação no Brasil, dentre os quais se destacam João Vicente Martins
(1810-1854), Domingos de Azevedo Duque-Estrada (1812-1900), Sabino Olegário
Ludgero Pinho (1820-1869), Maximiano Marques de Carvalho (1820-1896), Antônio
do Rego (1820-1896), Saturnino Soares de Meireles (1828-1909), Manuel Antônio
Marques de Faria (1835-1893), Alexandre José de Melo Morais (1843-1919),
Joaquim Duarte Murtinho (1848-1911) e Cássio Barbosa de Resende (1879-1971).
Em 1858, o Hospital da Ordem Terceira da Penitência (no Rio de
Janeiro) abriu uma enfermaria homeopática, iniciativa seguida pelo Hospital da
Beneficência Portuguesa (1859), Hospital da Ordem Terceira do Carmo (1873),
Santa Casa de Misericórdia (1883), Hospital Central do Exército (1902) e
Hospital Central da Marinha (1909).
No início do século XX, Licínio Cardoso fundou no Rio de Janeiro a
Faculdade Hahnemaniana (1914) e, a ela anexo, o Hospital Homeopático do Rio de
Janeiro, atualmente Escola de Medicina e Cirurgia da Uni-Rio.
Em 1966, durante o governo de Castello Branco, foi decretada
obrigatória a inclusão da Farmacotécnica Homeopática em todas as faculdades de
Farmácia do Brasil. Em 1977 foi publicada a primeira edição oficial da Farmacopéia
Homeopática Brasileira. A Homeopatia foi reconhecida como especialidade
médica pela Associação Médica Brasileira, em 1979, e no ano seguinte deu-se o
referendo definitivo pelo Conselho Federal de Medicina (Sociedade de Medicina e
Cirurgia de Campinas, 2004).
Reflexões derradeiras: homeopatia ontem e hoje
A despeito das similaridades com o pensamento médico hipocrático e
com os conceitos de Paracelso, a Homeopatia surgiu como uma modalidade
terapêutica 'revolucionária' no seu tempo. Nos anos seguintes à sua criação,
pôde-se assistir à difusão dos conhecimentos homeopáticos por boa parte do
mundo, os quais se consolidaram em torno das concepções formuladas por
Hahnemann, sendo mantidos os mesmos princípios e uma linguagem bastante próxima
daquela cunhada por seu fundador. Contribuíram para isso os inúmeros relatos de
eficácia dos medicamentos homeopáticos, nas mais díspares condições clínicas.
Tal panorama manteve-se por um tempo não muito amplo. Ao longo do
século XIX emergem profundas modificações no saber-fazer da
medicina. Tanto o advento da Anatomia Patológica – que teve em Bichat um de
seus maiores expoentes (Foucault, 1994) –, quanto a descoberta dos
microrganismos patogênicos – nos trabalhos de Pasteur, Koch e Lister,
principalmente – acabaram por demarcar uma 'materialização' da doença, a qual
podia ser vista e compreendida a partir de uma causa
claramente delimitada, caracterizando uma nítida posição substancialista no
processo saúde-doença, tal qual o demarcado por Gaston Bachelard (Bachelard,
1995). As concepções de origem vitalista tornaram-se
progressivamente esvaziadas, graças à ascensão de modelos mecanicistas,
de origem cartesiana (Capra, 1996), os quais alcançaram grande sucesso na
biologia e na ciência médica, com reflexos que se mantêm presentes ainda hoje,
como discutido por Capra em O ponto de mutação:
Em biologia, a concepção cartesiana dos organismos vivos como se
fossem máquinas, constituídas de partes separadas, ainda é a base da estrutura
conceitual dominante. Embora a biologia mecanicista de Descartes não tenha ido
muito longe, por ser bastante simples, tendo por isso sofrido consideráveis
modificações nos últimos trezentos anos, a crença no fato de que todos os
aspectos dos organismos vivos podem ser entendidos se reduzidos aos seus meros
constituintes, e estudando-se os mecanismos através dos quais eles interagem,
está na própria base do pensamento biológico contemporâneo. (Capra, 1996, p.
96)
O foco dado à questão da vida – e à medicina, por conseqüência –
trouxe um avanço espetacular no século XX, capaz de colocar em 'apuros' os mais
renitentes críticos da idéia de progresso científico. Entretanto, muitos
problemas permanecem insolúveis no âmago do paradigma biológico 'mecanicista',
podendo mencionar-se, a título de exemplo, questões das neurociências, da imunologia
e da embriogênese. Este é um dos constituintes desse mosaico: as ciências
biomédicas dos últimos cem anos, apesar do seu espetacular alcance, mantêm um
repertório explicativo ainda bastante limitado para o que quer que seja a vida,
a saúde e a doença (Capra, 1998).
Podem-se reunir, ainda, (1) o fato de o médico ter se afastado
paulatinamente dos seus pacientes – substituição da anamnese e do exame físico
por exames complementares... menos diálogo com os que sofrem e mais testes de
laboratório (Braunwald et al., 2002; Siqueira-Batista & Siqueira-Batista,
2002) – e (2) o surgimento de alguns resultados inesperados em relação à
'memória' da água, tal qual apresentado nos polêmicos artigos do respeitado J.
Benveniste (Benveniste et al., 1994; Davenas et al., 1987). Todos esses
elementos têm proporcionado certo (re)nascimento do interesse pela medicina
homeopática, a partir da percepção de que a incompreensão de seus mecanismos
não é suficiente para decretar sua ineficácia, cabendo, outrossim, que esta especialidade
seja mais bem investigada, dentro do que se tem hoje disponível.
É possível que este seja um dos grandes dilemas a serem
enfrentados: se a homeopatia se 'rende' a uma 'racionalidade' distinta da sua,
alopática, em busca da definitiva (?) validação científica – o que já vem sendo
pregado por muitos homeopatas (Corrêa & Quintas, 1995; Luz, 2002) –, corre
o risco real de se descaracterizar enquanto sistema próprio de pensamento e
de fazer médicos; se, todavia, resiste a se submeter aos
critérios 'alienígenas' de confirmação de eficácia, poderá permanecer como
conhecimento marginalizado e taxado como inferior. Esta é a difícil
encruzilhada, quiçá como uma escolha de Sofia...
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Hist. cienc. saude-Manguinhos v.13 n.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2006
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702006000100002
Trabalho realizado no Núcleo de Estudos em Filosofia e Saúde
(NEFISA) da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO) e no Centro de
Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
1 Alguns
elementos do psiquismo são também levados em consideração, como, por exemplo, o
humor e o estado de consciência do enfermo.
2 Mas
não é apenas esse o 'mecanismo' de adoecimento relacionado às alterações
humorais. Os humores no estado 'cru' seriam deletérios ao
indivíduo. Deste modo, mudanças qualitativas dos humores – em um mecanismo
chamado pelos médicos hipocráticos de cocção (à semelhança do
realizado com os alimentos) – teriam um efeito decisivo em amainar a sua
nocividade ao organismo.
3 A
analogia com o fragmento subsistente de Anaximandro é bastante pertinente: uma
preeminência 'espúria' de um dos contrários no mundo promove uma situação tal
que se torna urgente a reparação da injustiça (Siqueira-Batista,
2003a). Outros exemplos de influência filosófica na medicina poderiam ser
apresentados; entretanto, uma investigação desta natureza mereceria um espaço
próprio para o seu desenvolvimento.
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Fonte:https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702006000100002&lng=pt&nrm=iso
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