A cidade de Santos no roteiro de expansão da homeopatia nos
serviços públicos de saúde no Brasil
The city of Santos and the expansion of
Brazilian public health services in homeopathy
Célia Maria Patriani JustoI; Mara H. de Andréa GomesII
IDepartamento de Medicina
Preventiva Escola Paulista de Medicina Universidade Federal de São Paulo. Rua
Borges Lagoa, 1341. 04023-034 São Paulo – SP – Brasil. celiapatriani@uol.com.br
IIRua Pedro de Toledo, 675. 04039-032 São Paulo – SP – Brasil. maga@medprev.epm.br
RESUMO
Em coerência com os princípios de integralidade, eqüidade e
universalidade presentes na reforma sanitária e na criação do Sistema Único de
Saúde (SUS), alguns municípios passaram a oferecer a homeopatia como opção
terapêutica. Este artigo aborda o contexto de implantação e consolidação da
homeopatia na cidade de Santos (SP), até a sua incorporação como alternativa de
atenção médica na rede pública de serviços de saúde. Naquela cidade, a
implantação muito se deveu não só a médicos e farmacêuticos, mas também a
médiuns receitantes que atuavam nos centros espíritas. Todos esses personagens
tornaram possível a reivindicação de oferta dessa modalidade de atendimento
pelos serviços de atenção primária do município. Nossa análise baseou-se em
entrevistas com profissionais que participaram desse processo, em relatórios
técnicos, artigos de jornais, revistas científicas e em livro escrito sobre a
primeira sociedade espírita da cidade.
Palavras-chave: homeopatia; kardecismo;
história da medicina; saúde pública; Santos (SP).
ABSTRACT
In
consonance with the principles of comprehensiveness, equity, and universality
that underlie Brazil's sanitary reform and creation of its Unified Health
System, some municipalities have begun offering homeopathy as a treatment
option. The article explores the context in which homeopathic treatment was
introduced and gained ground in the city of Santos, São Paulo, down through its
incorporation as an alternative in the public healthcare network. Homeopathy
was introduced in Santos not only by doctors and pharmacists but also by
prescribing mediums from spiritist centers. The request that the municipality's
primary-care services offer this alternative was possible thanks to the
presence of all these players. The present analysis was based on interviews with
the professionals who took part in the process, on technical reports, newspaper
articles, and scientific journals, and on a book about the city's first
spiritist society.
Keywords: homeopathy; Kardecism; history of
medicine; public health; Santos, (São Paulo state).
A homeopatia no Brasil
A homeopatia foi introduzida no Brasil em novembro de 1840 pelo
ex-comerciante e médico francês de Lyon, Benoit Jules Mure, conhecido como
doutor Bento Mure. Médico homeopata com atuação política ligada ao socialismo
de Fourier, sua participação nesse movimento o trouxe ao Brasil com a intenção
de criar um falanstério, comunidade social e produtiva, com característica de
cooperativa, na região de Sahy, em Santa Catarina, onde chegou a congregar
adeptos. Sua proposta de implantação da colônia socialista, no entanto, não
alcançou os resultados esperados, e em 1843 Mure retornou ao Rio de Janeiro.
Entre ações relevantes para a implantação e expansão da
terapêutica homeopática em nosso país, nos oito anos em que permaneceu no Rio o
doutor Mure fundou o Instituto Homeopático do Brasil e a Escola de Homeopatia.
Não podemos deixar de destacar a figura de seu amigo João Vicente Martins,
médico responsável pela introdução dessa terapêutica na Bahia e em Pernambuco.
A história político-institucional da homeopatia, como relata Luz
(1996), foi marcada por polêmicas com a medicina oficial. Os homeopatas
buscavam legitimar suas práticas e seu saber junto à sociedade brasileira
mediante várias estratégias e ações, apesar das lutas internas no movimento.
Foi necessário transcorrer mais de século, contudo, até que surgissem leis
específicas na área farmacêutica, em 1965, com a aprovação da primeira edição
da Farmacopéia homeopática brasileira, em 1977, revista e ampliada
em 1997, completando a oficialização da produção, fiscalização e
profissionalização da farmácia homeopática no Brasil.
No âmbito da área médica, a oficialização da homeopatia ocorreu
com a fundação da Associação Médica Homeopática Brasileira (AMHB). Além da
institucionalização, a AMHB permitiu que a homeopatia fosse reconhecida como
especialidade médica pela Associação Médica Brasileira (AMB) em 1979 e, no ano
seguinte, pelo Conselho Federal de Medicina. Esses reconhecimentos contribuíram
para que a nova especialidade fosse legitimada politicamente e
institucionalizada nos serviços públicos de saúde a partir de 1985, com a
assinatura do convênio entre o Instituto Nacional de Assistência Médica e
Previdência Social (Inamps), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e o Instituto Hahnemanniano do Brasil (IHB)
(Luz, 1996).
A fundação da Associação Brasileira de Farmacêuticos Homeopatas
(ABFH), em 1990, foi importante para a consolidação da atenção médica
homeopática e resultou no Manual de normas técnicas para farmácia
homeopática, editado em 1991, 1995 e 2003.
Dentre os acontecimentos que seguiram, vale destacar dois eventos
que contribuíram para a consolidação da homeopatia: sua inserção nos próprios
serviços do Inamps (Brasil, 28 jan. 1986) e a 8ª Conferência Nacional de Saúde
(1986), que, em suas resoluções finais, destaca o direito de o usuário escolher
a homeopatia entre as terapêuticas com que deseja se tratar (Conferência...,
1986).
Em 1988 a Comissão Interministerial de Planejamento (Ciplan) –
abrangendo os Ministérios da Saúde, Educação, Previdência, Trabalho e
Planejamento – publicou a resolução que traçava as primeiras normas para
implantação do atendimento homeopático nos serviços públicos de saúde (Brasil,
11 mar. 1988). Com essa medida as redes locais de saúde começaram a introduzir
programas de terapias alternativas, iniciando um movimento de expansão no qual
os municípios ganharam autonomia para a execução dos serviços de saúde. Muitos
deles passaram, assim, a considerar a homeopatia como opção terapêutica a ser
inserida nesses serviços.
No mesmo ano foi criado em São Paulo, na Secretaria Estadual de
Saúde, o pioneiro Grupo Especial de Programas em Práticas Alternativas de Saúde.
Em 1989 o Grupo lançou um documento que se tornaria referência para outros
estados, denominado "As diretrizes gerais para o atendimento
homeopático" (Moreira Neto, 2001). O Centro de Saúde da Barra Funda,
ligado à Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, que desde
1981 oferecia tratamento homeopático a um número limitado de pacientes, nessa
época ampliou o atendimento e tornou-se referência, fato considerado um marco
importante para a implantação da homeopatia na atenção primária à saúde (Silva
et al., 1988).
Os princípios da integralidade, eqüidade e universalidade,
presentes na reforma sanitária e na criação do Sistema Único de Saúde (SUS),
serviram de parâmetros para consolidar a prática da homeopatia, mediante a
consideração do paciente como unidade hierarquizada e indivisível numa
abordagem ampliada do processo saúde–doença, sem restringi-lo a recortes
patológicos.
A homeopatia foi introduzida na rede pública da cidade de Santos,
em São Paulo, em fevereiro de 1988, de início centralizada na Secretaria de
Higiene e Saúde e posteriormente descentralizada – não sem dificuldades –, com
a criação do Setor de Práticas Alternativas (Sepral). Desde então, apesar de
funcionar em caráter oficioso, esse setor disponibiliza tratamento homeopático
para adultos e crianças, buscando possibilitar, conforme informações de seus
integrantes, o acesso democrático a essa terapêutica.
Para reconstruir o contexto de implantação da homeopatia nos
serviços públicos de Santos, precisamos levar em conta o importante trabalho
desenvolvido por aqueles que atuaram na sua introdução, divulgação e expansão.
Além do serviço prestado à população pelos homeopatas médicos e farmacêuticos,
encontramos registros de consultas realizadas por médiuns receitantes em
centros espíritas.
Os pioneiros da homeopatia em Santos
Em São Paulo, a homeopatia foi introduzida na cidade de Lorena por
volta de 1845, quando, munidos de uma botica e de conhecimentos adquiridos, os
médicos diplomados pela Escola Homeopática do Brasil promoviam sua difusão por
inúmeras cidades do interior.
A homeopatia ganhou mais força após 1890, graças à atuação de
pioneiros como José Ferraz de Magalhães Castro, presença significativa em
Santos, a ponto de ser muito estimado por grande clientela. Segundo Nilo Cairo
(1991), autor de livro ainda hoje usado por muitos pacientes que buscam a
homeopatia como fonte de orientação medicamentosa, Magalhães Castro era
considerado na época um dos maiores conhecedores de matéria médica homeopática.
Outro precursor digno de menção é Benedito Júnior, co-fundador da
Sociedade Espírita Anjo da Guarda, em 1883, época em que eram terminantemente
proibidos o estudo e a prática do espiritismo no Brasil. Por esse motivo
fundou-se pouco depois, a 28 de agosto de 1895, a Associação Auxílio aos
Necessitados, que funcionava paralelamente à sociedade espírita e cujo trabalho
de assistência justificava a presença do grupo. Note-se que, na mesma data e
local, foi criada a primeira farmácia homeopática de Santos, também denominada
28 de Agosto, em homenagem a santo Agostinho, falecido nesta data.
Por mais de cem anos a farmácia 28 de Agosto possibilitou o
fornecimento gratuito de medicamentos homeopáticos no atendimento à população
carente, contribuindo de maneira efetiva para a divulgação, expansão e
consolidação da homeopatia em Santos.
Benedito Júnior atuava como médium receitante, realizando
consultas e fornecendo medicamentos homeopáticos gratuitamente, ações que lhe
renderam (e à homeopatia) muitos adeptos. As visitas domiciliares aos enfermos
também redundaram em apoio e confiança, tanto das famílias populares como das
mais abastadas, e ainda ajudaram na admissão de seu filho, Cícero Augusto de
Souza, na Associação. As atuações de ambos nos fazem supor terem contribuído
para a aceitação e divulgação não apenas do ideário kardecista, como da própria
homeopatia.
Benedito Júnior e seu filho viram suas atividades em conjunto
muito ampliadas por ocasião da epidemia de febre amarela, em 1917, quando a
Farmácia 28 de Agosto recebeu pedidos até mesmo de outros estados. Para dar
conta da maior demanda por remédios homeopáticos, a Sociedade contraiu uma
dívida considerada elevada para a época, posteriormente quitada graças a
contribuições do comércio cafeeiro de Santos.
Apenas em 1929 encontramos registro de um posto médico voltado
para a homeopatia, sob responsabilidade de João Olavo Canto. À frente da
Farmácia 28 de Agosto estava o farmacêutico José Soares Santiago, auxiliado por
Hilda de Andrade e João Ferraz de Barros, médium receitante conhecido como Seu
Joãozinho, que trabalhou com Benedito Júnior no atendimento aos necessitados e
prestou atendimento homeopático por mais de trinta anos, até o seu falecimento
em 1963.
Durante muitos anos, tanto o atendimento médico como os
medicamentos foram oferecidos gratuitamente, pois tal prática constava do
regulamento da Associação Auxílio aos Necessitados, dando-nos uma idéia de quão
imbricadas eram, em Santos, a atenção médica e a espírita no tocante à
homeopatia. Só a partir de 1942, para contornar dificuldades econômicas, a
diretoria da Associação passou a autorizar a cobrança dos medicamentos, embora
a instituição continuasse com a distribuição gratuita às pessoas carentes.
A renda advinda da venda de medicamentos impulsionou o crescimento
da Farmácia 28 de Agosto, e era dela que provinha a maior parte dos recursos
para manutenção dos serviços assistenciais prestados pela Sociedade Espírita
Anjo da Guarda e pela Associação Auxílio aos Necessitados, até que em 1968
ocorreu a fusão das duas entidades. A respeito dessa fusão, Dias (1994, p.158)
afirma:
Desde que o Espiritismo deixou de ser combatido e perseguido, o
grupo de irmãos que militava nas duas entidades decidiu unilas, uma vez que
eram dirigidas pelos mesmos elementos ... a fundação da Associação em 1895 não
foi apenas com o objetivo de ampliar o trabalho assistencial, mas
principalmente, para servir de cobertura para os trabalhos espirituais, que
naquela época não eram aceitos por aqueles que desconheciam as suas elevadas
finalidades. Justo portanto que, removidas as dificuldades, conquistada a
liberdade de religião e de pensamento, fosse realizada a pretendida fusão.
No posto médico do Anjo da Guarda colaboraram os médicos João
Olavo Canto, Ernesto Toledo Arruda, João Batista de Barros Pimentel, Manoel
Pereira Nogueira e Alexandre Alves Peixoto. Com a morte deste último em 1975,
após mais de quarenta anos de trabalho na instituição, houve dificuldade para
se conseguir um médico homeopata que o substituísse. O lugar foi ocupado por
Luiz Guilherme Gomes Barbarisi, que durante mais de 15 anos atendeu tanto a sua
clientela particular como pessoas sem recursos indicadas pela Associação.
Não encontramos registro dos motivos que conduziram às
dificuldades econômicas enfrentadas posteriormente pela Farmácia 28 de Agosto,
a ponto de ser fechada em 1996, após um século de funcionamento e de
contribuição para o desenvolvimento da homeopatia em Santos. De qualquer modo,
podemos observar que a introdução, a implantação e a expansão da homeopatia no
município de Santos são marcadas pelo trabalho da Associação Espírita
Beneficente Anjo da Guarda, na pessoa de Benedito Júnior, e pelo trabalho
prestado por outros médicos e seus sucessores que, juntamente com as farmácias
homeopáticas, contribuíram para o desenvolvimento dessa prática na cidade.
Entre esses médicos destacam-se o cirurgião Rivaldo Azevedo e seu
filho Rivaldo Azevedo Júnior, além do renomado homeopata José de Almeida Prado,
assíduo freqüentador do consultório de Murtinho Nobre, considerado um dos
mestres da homeopatia no Brasil. Almeida Prado mudou-se para Santos em 1935 e
lá clinicou por quase quatro anos. Em 1959, juntamente com o farmacêutico
Rubens Gimenes, fundou o laboratório homeopático Almeida Prado, um dos mais
conceituados do país até a atualidade.
Ao longo de quase 50 anos, Nelson Toledo Piza desenvolveu suas
atividades para ampla clientela. Após sua formatura na Universidade de São
Paulo em 1935, viajou para a Europa, onde conviveu com Leon Vannier e J.A.
Lathoud, eminentes mestres da homeopatia na França. Mudou-se para Santos a
convite de Almeida Prado. O baiano Lothário Americano, já com experiência de
trabalho em farmácia homeopática, visitou Santos em 1948, durante um congresso
de homeopatia realizado em São Paulo, e foi convidado por Toledo Piza para
clinicar na cidade. Mudou-se com a família em 1950 e, além do próprio
consultório, montou um laboratório homeopático.
Como não poderia deixar de ocorrer, desde os primórdios da
homeopatia em Santos a área farmacêutica acompanhou a expansão desse campo.
João Thomaz de Mello Senra, licenciado como prático em 1888, fundou em 1902 a
farmácia alopática Serpiária, mas vendeu-a em seguida para inaugurar sua
farmácia homeopática, após ter sido curado de uma enfermidade por Magalhães
Castro. Mário Gonçalves Pereira e Oswaldo Renna Burt também fizeram parte do
rol de farmacêuticos homeopatas em Santos – o primeiro fundou a Farmácia
Homeopata em 1930, e o segundo, a Farmácia Colombo em 1939.
Durante muitos anos, portanto, a homeopatia em Santos
desenvolveu-se graças à ação conjugada de médiuns receitantes, médicos e
farmacêuticos, de onde podemos supor que a conjugação de homeopatia e
espiritismo contribuiu para a aceitação dessa medicina por parte da população.
Embora a Associação Anjo da Guarda tenha deixado de prestar atendimento
homeopático após o fechamento da Farmácia 28 de Agosto, os cem anos em que
atuou junto às classes populares e abastadas haviam rendido frutos, e a ampla
aceitação da homeopatia em Santos facilitou a sua implantação nos serviços
públicos, ainda que com outra feição.
A implantação da homeopatia na rede pública de Santos
A introdução do atendimento homeopático na rede pública de Santos,
em 4 de fevereiro de 1988, significou ampliação do acesso a essa terapêutica,
que deixava de configurar uma caridade praticada por alguns para ser um direito
de cidadania assegurado pela proposta de universalização da assistência médica
e do direito de escolha.
O início
Para padronizar as condutas dos 11 médicos homeopatas, o serviço
era centralizado na Secretaria de Higiene e Saúde (Sehig), mas diante dos
resultados positivos alcançados, em 1989 esse serviço foi transferido para as
unidades básicas, então denominadas Postos de Assistência Comunitária (PAC).
Tais medidas foram acompanhadas pela criação, no mesmo ano, do Centro de
Práticas Alternativas (Cepral) do município, cuja finalidade é atuar tanto no
atendimento como na divulgação e pesquisa nas modalidades de homeopatia,
acupuntura e fitoterapia. Nessa etapa inicial, o atendimento homeopático também
foi implantado no Posto de Atendimento Médico (PAM) Aparecida, resultado de uma
parceria entre o estado e o município.
A partir de então, a promoção de uma série de eventos voltados
para profissionais tem contribuído para divulgar a homeopatia em toda a região
da Baixada Santista, a exemplo dos Encontros de Homeopatia em Saúde Pública, da
comemoração do Dia Nacional da Homeopatia (21 de novembro), de cursos
introdutórios às práticas alternativas e da Semana Integrada de Saúde, voltada
para educação em saúde e envolvendo outros municípios. Para a população em
geral encontramos notícias de realização de cursos informativos, entrevistas em
rádio e televisão e publicação de matérias em jornais e revistas, além de
palestras em comunidades de bairros e escolas municipais. Como apoio didático
ao programa de educação em saúde, a secretaria municipal publicou o manual
informativo "O que você precisa saber sobre homeopatia", que esgotou
sua primeira edição com dez mil exemplares.
Um estudo mais sistemático sobre as repercussões desse processo
consistiu em uma avaliação do serviço junto aos usuários de homeopatia, com
aplicação de 270 questionários, apresentado no 3º Encontro de Homeopatia no
Serviço Público, realizado em São José dos Campos em 1992, e no 21º Congresso
Brasileiro de Homeopatia, em Belo Horizonte. Os resultados mostraram que 59,25%
dos pacientes procuraram a homeopatia em razão de problemas respiratórios e que
destes, 85,62% obtiveram resultados satisfatórios com o tratamento.
Os desdobramentos
O período seguinte à fase de implantação da homeopatia na rede
pública de Santos lembra as dificuldades enfrentadas desde os anos 70 (Luz,
1996), já que se amplia a luta pela expansão dessa atividade: além dos
profissionais alopatas, outros protagonistas são envolvidos, inclusive demais
servidores públicos e diversas instâncias decisórias. Vários itens compõem as
dificuldades relatadas em ofícios durante a década de 1990: número insuficiente
de profissionais, pedidos de afastamento por insatisfação e discriminação do
trabalho nas unidades; precariedade de espaço de trabalho; falta de convênio
com farmácias homeopáticas para garantir o medicamento gratuito ao paciente;
falta de oficial administrativo; falta de recursos humanos e materiais; e
impossibilidade de expansão do programa de acupuntura, que contava com apenas
um profissional para o atendimento de todo o município.
A inserção oficial do Sepral no organograma da Secretaria, em
1993, conferiu novo alento para a expansão dessa medicina em Santos, pois
significou sua inclusão no orçamento municipal. Entretanto a licitação
encaminhada para contratação de uma farmácia homeopática, para fornecimento de
medicamentos pelo período de um ano, seria adiada. E transcorridos apenas dois
anos, o Sepral foi retirado do organograma oficial e transferido para o Serviço
de Reabilitação e Fisioterapia, causando surpresa e indignação para os
profissionais que atuavam no setor e os cerca de quatro mil usuários
cadastrados, que temiam a extinção do serviço em curto prazo. Um dos motivos
dessa alteração pode ter sido a reduzida capacidade de atendimento da
homeopatia em relação à medicina convencional.
Deve-se considerar que a consulta homeopática exige maior tempo do
médico no atendimento ao paciente, pois a escolha do medicamento depende de uma
abordagem integral da pessoa que está doente e requer tempo. Em um sistema de
assistência médica em que a quantidade de pacientes atendidos é critério de
produtividade, o atendimento homeopático é desfavoravelmente avaliado. O
cálculo poderia ser facilmente modificado se fosse levado em conta que, no
contexto da medicina convencional, a rapidez da consulta acaba acarretando
maior quantidade de exames complementares para a realização do diagnóstico,
muitas vezes encarecendo o ato médico. No atendimento homeopático, ao
contrário, reduz-se o número de exames complementares, uma vez que a consulta
prioriza a relação médico–paciente no tempo e na abordagem.
Constatamos um gradual esvaziamento da alentada e prometida
expansão do atendimento homeopático na rede pública de Santos quando, em 1996,
uma moção do Sepral encaminhada à 4ª Conferência Municipal de Saúde, realizada
em julho daquele ano, apresentava uma série de reivindicações para fazer frente
à não-renovação do contrato firmado com a farmácia homeopática. O tom
reivindicatório da moção revela o embate que profissionais e técnicos travam em
um âmbito de extensão de direitos, além de expor um aspecto do campo de luta
pela consolidação da homeopatia como alternativa à medicina convencional. Seus
itens são: oficialização da homeopatia na rede de saúde pública; direitos
idênticos aos dos outros serviços; concurso público para ampliar o quadro de
especialistas; incentivo de pesquisas nas especialidades e reciclagem dos profissionais;
fornecimento gratuito de medicamentos homeopáticos à população; e
infra-estrutura adequada para o desenvolvimento do setor.
Mas não foram apenas os profissionais que se organizaram. Em 1999,
os pacientes atendidos na rede pública constituíram o Movimento dos Amigos e
Usuários da Homeopatia e Acupuntura (Mauha), cujo estatuto foi acompanhado de
um abaixo-assinado com 15 mil assinaturas solicitando, ao secretário municipal,
a ampliação do setor. O Mauha pode ser considerado um movimento de base popular,
suprapartidário e sem fins lucrativos. Participa do Conselho Municipal de Saúde
e está voltado para o desenvolvimento da homeopatia e da acupuntura na rede de
saúde pública, com ações de apoio para a implantação, implementação e
consolidação da homeopatia nesses serviços. Entre seus objetivos está a busca
por garantia de acesso e livre escolha aos usuários da homeopatia e da
acupuntura; sensibilização das autoridades de saúde para que cumpram a
legislação do município relacionada a essas especialidades; luta pelo
fornecimento gratuito de medicamentos homeopáticos na rede de saúde do
município; implementação de programas como educação integrada continuada,
combate à osteoporose, realização de atividades físicas e controle de
tabagismo; incentivo ao estudo e à pesquisa sobre homeopatia e acupuntura;
comemoração anual do Dia Nacional da Homeopatia; estímulo a campanhas de saúde;
conquista de infra-estrutura e número adequado de profissionais, bem como
garantia de continuidade dos programas do setor.
Perspectivas
Apesar das dificuldades, o Sepral fornece tratamento homeopático
para adultos e crianças, além de acupuntura e atividades físicas para os
participantes de seus programas. Sua clientela é a mesma atendida na rede
pública, com demanda livre ou por encaminhamento de outro profissional da
saúde. A capacidade de atendimento é de vinte horas semanais, que correspondem
a duas consultas e seis retornos por dia. São encaminhados para a consulta não
só os pacientes que procuram tratamento homeopático pela primeira vez, mas
também aqueles que se afastaram por um ano ou mais e agora voltam a procurar o
serviço.
Por falta de computador e outros requisitos necessários para
viabilizar informações, não existe controle da demanda reprimida nem integração
de informação entre as unidades básicas que dispõem de atendimento homeopático.
Entretanto pudemos constatar, em nossas observações de campo, que essas
dificuldades são contornadas com boa vontade e empenho dos profissionais que
trabalham na recepção. Observamos também uma postura administrativa flexível,
que facilita o acompanhamento clínico dos pacientes em tratamento, pois estes
são atendidos pelo médico homeopata de acordo com suas necessidades, mesmo
quando a consulta não está agendada.
A implementação da homeopatia no SUS representa uma importante
estratégia para a construção de um modelo de atenção centrado na saúde e não
apenas na doença, uma vez que recoloca o paciente no centro do paradigma,
compreendendo-o nas dimensões física, psicológica, social e cultural. A
inclusão das consultas médicas homeopáticas na tabela de procedimentos do
Sistema de Informações Ambulatórias do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS), em
1999, deu visibilidade ao crescimento da atenção homeopática na rede pública.
Segundo a Comissão de Saúde Pública da AMHB, observou-se um crescimento anual
de 10% até o final de 2003. Nesse ano, vinte estados e cerca de cem municípios
informaram a realização de consultas homeopáticas no sistema.
Em Santos, no período compreendido entre 1995 e 2004 mais de
cinqüenta mil pessoas foram atendidas pelo setor de homeopatia. A Tabela
1 apresenta o atendimento realizado nesse período, observando-se que
em 1998 e 1999 foram realizadas mais de sete mil consultas. A queda a partir de
2000 ocorreu possivelmente devido a aposentadoria ou transferência de médicos
homeopatas sem a necessária reposição de novos profissionais. No entanto
percebe-se um gradativo aumento do número de consultas até 2004, a indicar uma
demanda crescente por esse tipo de tratamento.
Permanecem, porém, muitos desafios a superar, desde a
oficialização do setor, com sua inclusão no organograma da Secretaria Municipal
de Saúde, até a realização de concurso público para ampliar o quadro de
especialistas, como também o fornecimento gratuito de medicamentos homeopáticos
à população, o incentivo a pesquisas e, ainda, a adequação de infra-estrutura
para o desenvolvimento do setor. A situação atual requer grande esforço da
equipe profissional, que se esforça para garantir o atendimento homeopático aos
pacientes do SUS.
Apesar da permanência de aspectos críticos, vislumbra-se uma
situação favorável de mudanças que permitirão o atendimento homeopático a
grupos maiores da população: trata-se da recente portaria 971, de 3 de maio de
2006, relativa à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no
SUS. Essa política atende, sobretudo, à necessidade de conhecer, apoiar,
incorporar e implementar experiências que já vêm sendo desenvolvidas na rede
pública de muitos municípios e estados, entre as quais destacam-se as ações
relativas à homeopatia, medicina tradicional chinesa, acupuntura e fitoterapia,
um rol de terapêuticas que buscam estimular os mecanismos naturais de prevenção
de agravos e de recuperação da saúde.
Para finalizar, enfatizamos que a homeopatia é uma especialidade
médica e farmacêutica de ação generalista, que abrange todas as faixas etárias
e requer tecnologia simples.
Considerações finais
Acreditamos que a experiência de implantação e consolidação da
homeopatia como opção terapêutica nos serviços públicos de saúde de Santos pode
oferecer informações importantes para subsidiar a organização e integração mais
efetiva dessa terapêutica em outros serviços de saúde pública, já que a
integração da homeopatia às demais ações desenvolvidas pelo SUS, juntamente com
a ampliação do acesso, vêm reforçar os princípios de universalização,
integralidade e eqüidade.
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História, Ciências, Saúde-Manguinhos
versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758
Hist. cienc. saude-Manguinhos v.14 n.4 Rio de Janeiro out./dez. 2007
https://doi.org/10.1590/S0104-59702007000400004
Recebido para publicação em julho de 2006.
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