AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS - LIVRO DE CLAUDINE BRELET-RUEFF


Sinopse
As medicinas tradicionais, com a sua busca permanente de harmonia e de síntese do Homem com o Universo, rumo a uma verdadeira Ecologia, têm vindo a desempenhar, nos últimos anos, o papel de uma nos alternativa digna de consideração.
A Medicina moderna, pela utilização de medicamentação artificial ou química, tem-se revelado uma desilusão para inúmeras pessoas. As medicinas paralelas (a Acupuntura, a Homeopatia, etc.) têm assim tido uma crescente procura.

AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS
CLAUDINE BRELET-RUEFF

Título original: Médecines Traditionelles Sacrées

Culture Arts Loisirs

Tradução de Maria Teresa Simões

Capa de Edições 70


PRÓLOGO

Não confundamos sagrado com religião, com magia ou com superstição! Ao longo deste livro, abordaremos o campo do pensamento «sagrado», quase raiando por vezes os limites da magia. Num capítulo como o consagrado às medicinas africanas, veremos que a magia não é mais que a «perversão» de uma determinada busca com vista ao conhecimento do Homem e do Universo.

Por sagrado, entendemos toda a procura que visa estabelecer a harmonia entre o «interno» e o «externo» , o «interior» e o «exterior», o individual e o colectivo, o microcosmo e o macrocosmo, ou o Homem e o Universo. Esta busca assemelha-se ao que o homem moderno chama ecologia. Não a ecologia ultrapassada, preocupada apenas com a vida dos seres na abundância, mas sim a que se preocupa com a energia solar e com a física vibratória.

Ecologia? Este nome vem da palavra grega oikos, ou habitat, casa, a qual deu origem à palavra «escola» na nossa língua... Assim, a ecologia traz já implícito no próprio nome, e graças ao duplo sentido da palavra, um programa bem estabelecido: aprender, aprender a viver com o seu habitat, com a sua aldeia ou cidade, com o seu país, com o seu planeta, com o Cosmos. Aprender a estudar a relação que nos une a todos num destino comum: quais são os fundamentos da vida humana? O nascimento, a alimentação, a aprendizagem e a educação.


O que é que faz o pensamento sagrado, senão uma (tentativa de) Síntese?... Síntese do Homem e do Cosmos

no seu berço de energia. De especialidade em sobreespecialidade, o homem moderno descobre o equilíbrio e o ritmo, o equilíbrio e o ritmo vibratório do Universo. Se bem que, na realidade, ele ignore qual a causa e a origem deste ritmo, pode no entanto imaginar a sua existência... Primeiro passo decisivo que conduzirá o Homem ao limiar do sagrado, ao equilíbrio, à sabedoria e à harmonia.

A vibração será, nesse caso, o chefe de orquestra do Universo, e todas as formas de vida não poderão escapar à harmonia ou à desarmonia, ao ritmo das fantásticas interferências vibratórias vindas do espaço intersideral.

A ciência actual, no seu domínio mais avançado, descobriu efectivamente que as formas do Universo constituem um todo, um conjunto indissolú vel, englobado num movimento do qual começamos a distinguir a forma e a equação.

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CAPITULO 1


XAMANISMO


A Pedro Mac Orian, feiticeiro em Saínt-Cyr-Sur-Morin a poeta do fantÁstico social

Medicina, magia e misticismo (não confundir com religião) estão intimamente ligados no xamanismo. É por isso, aliás, que se utiliza muitas vezes o termo de «xamã», quando se fala de feiticeiros, de curandeiros ou de mágicos, qualquer que seja a área cultural onde tal fenómeno se manifeste: índia, Irão, Mesopotâmia, China, etc., ou até quando encontramos qualquer «faquir», mesmo numa História que nos está próxima: tal como Mesmer ou Rasputine, Cagliostro ou o conde de Saint-Germain. «O Xamanismo, no seu sentido restrito, é por excelência um fenómeno religioso siberiano e central-asiático.
O vocábulo deriva do russo, da palavra shaman.» () O xamã existe também noutros lugares; encontramo-lo por exemplo nas chamadas sociedades «etnológicas». É o niedecine-nian que pratica a técnica do êxtase.

O xamã possui a faculdade da incorporação dos espíritos. A sua iniciação é-lhe conferida directamente pelos espíritos, ou divindades, no decurso do êxtase, que não é senão «a experiência concreta da morte ritual», como muito bem sublinhou Mircéa Eliade.

Esta iniciação comporta os três tempos do esquema seguido por todas as cerimónias tradicionais: sofrimento-niorle-ressurreiçãa. Depois do sofrimento, vem a morte-

(’) Cf. Eliade (M): O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do r'xIase (Pauis, Payot, 1951).



-êxtase, seguida de uma nova vida: o xamã torna-se um homem diferente.

Não deve confundir-se esta iniciação com uma aprendizagem técnica dada por um mestre. A primeira escola do xamã é uma experiência cósmica, directa.

Poeta, vidente, curandeiro, praticando a medicina empírica, por vezes prestidigitador ou ventríloquo (quando faz falar os espíritos), em qualquer dos casos sempre particularmente inteligente como todos os grandes criadores, o xamã desempenha também um importante papel social, indo até ao ponto de assumir o de um chefe que conduz e dirige a história da sua tribo, nomeadamente quando indica quais os lugares propícios às colheitas ou à caça. Mais perto de nós do que os antigos palcolíticos, os Celtas conheciam este género de organização: o poder dos seus druidas era, em muitos aspectos, superior ao dos seus chefes e cavaleiros.

O Xamanismo parece ser, na origem -e do ponto de vista etnográfico -, um fenómeno ligado essencialmente à vida tribal dos caçadores-colectores que se vai desintegrando à medida que a tecnoeconomia se torna mais complexa e leva os homens a agruparem-se nas cidades e nas aldeias à volta dos altares consagrados aos deuses agrários.

O RETRATO DE UM XAMÃ

O seu rosto conserva-se frequentemente coberto enquanto ministra a sua terapêutica. É, na maior parte das vezes, um homem. Mas existem populações onde as mulheres são consideradas «aptas» para se tornarem xamãs, uma vez que são menos susceptíveis, dizem, de se entregarem à magia negra para satisfazer as suas ambições materiais e pessoais... Uma tal atitude pareceria bem estranha à Inquisição falocrática que as nossas feiticeiras tiveram de suportar!

C) «Um verdadeiro xamã deve ser sério, possuidor de tacto, saber convencer os que o rodeiam. Sobretudo, não deve mostrar-se presunçoso, orgulhoso, fátuo», diz Sieroszewski em «Du chamanisme d'aprés les croyances des Yakontes», Revue de I'Histoire des Religions, p. 46, 1902.

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«Como o Xamanismo não implica nem celibato nem interdição de ter descendentes, o xamã é muitas vezes casado; o seu cônjuge serve-lhe de assistente, e os filhos herdam a sucessão médico-mágica.» (1) Sem no entanto se tornarem por sua vez xamãs, é necessário acrescentar, já que não é preciso atingir o êxtase para poder praticar a medicina das plantas ou os «segredos», nem para poder ser médico, parteira ou endireita.

Quando não celebra, o seu rosto aparentemente não se distingue do dos outros. Diferencia-se pela alma, pelos seus poderes e pelo trajo, que os representa.

«O trajo xamânico constitui por si mesmo uma hierofania e uma cosmografia religiosa: revela não somente uma presença sagrada mas também os símbolos cósmicos e os itinerários metafísicos.» (5

Só o veste quando realiza as suas curas terapêuticas. Sob certo aspecto, este trajo é a antena que permite ao niedecine-man captar os espíritos e metamorfosear-se num verdadeiro transformador de energia, reconhecido e aceite por todos.

O facto é constituído, entre os Siberianos, por um cafetã, ao qual se pendura todo um arsenal de objectos de ferro bastante ruidosos: discos furados, representações de animais (sob a forma dos quais os espíritos aparecem), arpões, etc., chegando a pesar tudo isso cerca de quarenta libras. A tradição obriga a que esses objectos estejam limpos da ferrugem, visto serem possuidores de uma «alma». Por vezes, outros ornamentos são cosidos no cafetã, representando os seios da mulher, assim como os órgãos internos. o fígado, o coração, etc., ou, ainda, animais, pássaros, luas, sóis e estrelas. Os troncos pendurados ao longo dos braços representam os ossos. Um boné de pele, eventualmente branco para o xamã «branco», ou negro para aquele cujos auxiliares são os espíritos maus, cobre o seu chefe; ou um capacete de ferro com chifres; ou ainda um boné ornamentado com espelhos de cobre que o ajudam «a ver o mundo», e por vezes eriçado de penas de aves. São talvez os vestígios dos chifres

(’) Cf. Bouteiller (M.): Chamanisme et guérison inagiqííe (Paris, PU, coll. Bibliothèque de philosophie contemporaine,
1950).

Eliade (M.), op. cit.

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dos magos que aparecem nos frescos pintados pelos nossos antepassados pré-históricos e cujo tema encontramos desde a Gália à Escandinávia. Frequentemente esses capacetes-coroas têm igualmente uma espessa franja, escondendo os olhos do xamã, que não tem necessidade senão do seu olhar interior, uma vez que é um clarividente. Diversos acessórios completam este trajo: o guizo, o tambor cheio de guizos, e por vezes, como entre os Tártaros e os Lapões, desenhos que representam a árvore do Mundo, o Sol, a Lua, o arco-íris, etc., ou um arco, como nos Altaicos e nas Américas, e por vezes também entre os Trácios.

O arco e o tambor não fazem parte de um armamento no qual o ruído cumpriria uma função antidemoníaca. São instrumentos de magia médica que participam, como toda a dança mágica do xamã, da sua viagem extática ao país dos espíritos.

Não nos demoraremos mais no rico simbolismo deste trajo, que obedece contudo às necessidades das diversas latitudes.

O APRENDIZ DE XAMÃ

Um completo domínio de si mesmo, uma grande inteligência, um certo dom de jogador-criador -diz Jean Piaget -, e uma grande capacidade de espontaneidade, levando à sensibilidade própria de um médium, parecem ser as qualidades comuns aos verdadeiros xamãs. (’) É verdade que existem bons e maus, tal como existem verdadeiros médicos e charlatões.

Mas como é que se forma um xamã?

A herança

Os poderes xamanísticos podem ser herdados dos pais, assim como os «segredos» médico-mágicos, tal como
(’) «A eloquência associada à inteligência, juntamente com a faculdade divinatória, que não tem nem mais nem menos relação que elas com a ordem extranatural.» Cf. Lot-FaIk (E.): «La Divination dans L'Arctique» em La Divination, t. II, Paris, PUF, 1968.

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já vimos. O termo «herdar» não deve, no entanto, ser tomado unicamente no sentido em que normalmente o utilizamos. Assim, um defunto de família, próximo ou afastado, pode transformar-se em embaixador dos espíritos: «O meu pai, que era xamã-conta um índio paviotoso (’) -, morreu há uma quinzena de anos. Começou a aparecer-me quando eu tinha cerca de cinquenta anos. Mandou-me que amasse os doentes. Durante um certo tempo, o poder aparecia-me sempre que eu sonhava. Depois esses sonhos acabaram. Uma cascavel disse-me o que era preciso fazer». Também uma índia papago conta que quando recebeu a sua «herança» desenvolveram-se-lhe no corpo cristais mágicos (”). Deste modo, o «herdeiro» observa toda uma série de rituais purificatórios: abstinência sexual, alimentar (limitada por vezes apenas à carne e ao sal). Abandona as suas actividades habituais para se consagrar à busca dos acessórios mágicos, cujo uso lhe será explicado mais tarde por um mestre xamã.

A busca voluntária

No contexto ocidental, esta busca pode ser comparada a uma viagem, que nos lembra a fuga das crianças ou dos adolescentes, até mesmo dos adultos, ávidos de descobrir o mundo. Deixando os seus, abandonam o campo restrito das suas cidades, para se impregnarem de orvalho, e deixarem-se conduzir pela sinfonia de uma natureza que os envolve e os fascina ao mesmo tempo. Como o xamã, também eles possuem geralmente um temperamento que se qualifica classicamente como epileptóide.

A aventura do aspirante a xamã recorda-nos a busca do poeta que viaja à volta do mundo, procurando novas imagens. Imagens das quais restituirá a essência ao seu

(’) Cf. Shamanism in Western North America. A study of Relationships, Evanston, Northwestern University Studies in the Social Science, n.* 2, VIII, 1938. (2) Cf. «The Autobiography of Papago Woman», publicada por R. Murray Underhill, in Memories of the American Antropological Association, vol. 46, Menasha, 1936.

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futuro público, tal com o fez Rimbaud no seu Bateau ivre, Lawrence Durrell reencontrando o seu Labyrinthe ou o Miroir à cinq faces da sua Justine de Alexandria. Ou ainda Henry Miller, possuído pela sede de penetrar nos mistérios da alma e do corpo.

No regresso do poeta na nossa sociedade, tal como no regresso do xamã na sociedade primitiva, um e outro «sabem». Quer um quer outro são pouco propensos à loquacidade, não desperdiçando esse saber senão nas suas criações: a arte ou a terapêutica. Esta definição que Mircéa Eliade nos oferece do poeta pode aliás aplicar-se ao verdadeiro xamã: «O xamã é o grande especialista da alma humana: só ele a vê, já que conhece a sua forma e o seu destino.»

Nesta busca, a privação dos bens materiais parece ser necessária. O poeta não hesita em arrostar com a miséria, pelo menos durante o seu tempo de iniciação, ou seja a sua juventude. O xamã, esse vai até à nudez mais completa.

Este metaconhecimento, ou metaconsciência, implica uma concentração mental que as necessidades materiais da nossa época nos impedem de imaginar. Dispersamo-nos demasiadamente. Para atingir este estado de concentração, o aspirante a xamã retira-se para longe da família, para o coração da floresta ou para a solidão grandiosa das montanhas, vivendo com os animais. Ensina o corpo a, dominar o frio banhando-se na água gelada das torrentes, a ultrapassar a dor fustigando-se com ramos, amputando-se uma ou mais falanges ou praticando escarificações profundas. Chega até ao mais íntimo do seu corpo, provocando o vómito, com o auxílio de ramos ou outros processos. Deambula velozmente, sobe e desce, torna a subir e a descer as encostas rochosas das montanhas desertas. Ultrapassa todo o desejo de repouso. Atinge assim o paroxismo do esgotamento fisiológico e nervoso, que o fará cair por completo no «estado extático», o transe e a visão tão procuradas.

«Deixam-se deslizar, ao longo da fenda, para o interior da caverna. Chegados ao fundo, cantam em homenagem à montanha Yolla Bolly. Depois ouvem como que um desmoronamento de rochas. Os ouvidos zumbem-lhes. Dançam como loucos. O sangue escorre-lhes da boca e do

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nariz. Perdem pouco a pouco a consciência e entram em transe.»

A busca involuntária

«Quanto mais poderoso for o espírito, tanto maior será a doença do seu novo protegido.» O

Esta informação, recolhida na tribo dos índios Haidu, foi confirmada pelas observações psiquiátricas do Dr. Guirdham. () Este médico britânico verificou, num grande número de doentes, que um estado de depressão intensa é tanto mais vezes seguido de fenómenos mediúnicos, de «comunicação silenciosa», quanto o «doente» mostrar um temperamento psíquico. Bem entendido, um estado semelhante ao da doença ou da depressão pode também ser induzido das «mortificações» da busca voluntária, visando ultrapassar a condição humana normal.

Mas vejamos como um índio céptico se pode transformar num grande xamã. O etnógrafo americano Franz Boas recolheu a história do maravilhoso encontro do índio Kwakiut], Quesaliá, com um lobo (), reproduzida na pág. 24 deste livro.

A VIAGEM-TRANSE

O xamã é um «homem de corpo aberto». Ele é a sede dos espíritos que incorpora. No transe que o possui, nada entrava a comunicação entre o microcosmo e o macrocosmo: pode portanto curar.

Revestido dos seus atributos, no turbilhão da sua dança, ao som frenético do zumbido da corda do seu arco, do ritmo do tambor e do enorme ruído dos seus acessórios, ele encontra a alma perdida do doente.

(’) Cf. «Wintu etnography», in American Archeology and Antropology, vol. 36, n.* 1, Berkeley, 1935. (’) Cf. «The Northern Maidu», in Bulletin of American Museum of Natural History, vol. 17, New York, 1905. (’) Cf. Dr. Guirdham, Ia Communication Silenciezíse, trad. CI. Brelet (Paris, Payot, 1972). (’), Cf. Boas (F.): The Religion of the Kivakiutl Indians (New York, Columbia University Press, 1930),.

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Exorciza o seu paciente extirpando-lhe (técnica do nosso herói Ouesalid), a maior parte das vezes por sucção, uma penugem ensanguentada, qualquer cristal de rocha, um verme, um sapo... ou outros objectos e animais mais
ou menos repelentes. É esta a fase da cura xamanística que frequentemente mais impressiona o observador ocidental. Porque «isto resulta!».

A assistência participa com fervor da narração que ele faz da sua viagem ao reino dos espíritos.

Segundo Lévi-Strauss, tratar-se-ia da narração de um mito desenvolvendo-se «no corpo interior do paciente». (’) Nesse caso o xamã é mais que um actor e mais que um médico. É poeta. É vidente.

O poeta-médico

«Os chapéus dos nelegan brilham; os chapéus dos iielegan alvejam;
Os nelegan tornam-se chatos e baixos, tal como cabos, muito direitos;
Os nelegan oferecem uma visão benéfica na doente, os nelegan abrem olhos luminosos na doente;
Os nelegan vão-se balançando para o alto do hamac, vão para o alto ... »

Esta narrativa ofegante descreve a passagem das forças mobilizadas numa parturiente para facilitar a passagem da criança. E os nelegan agem como um pénis em erecção, abrindo caminho para a matriz.

Claude Lévi-Strauss analisa assim a situação: «Tudo se passa como se o oficiante tentasse obrigar uma doente, cuja atenção está sem dúvida reduzida - e a sensibilidade exacerbada-pelo sofrimento, a reviver de maneira muito precisa e muito intensa uma situação inicial e a aperceber-se mentalmente dos mínimos detalhes. Com efeito, esta situação conduz a uma série de acontecimentos dos quais o corpo e os órgãos internos da doente serão o suposto teatro. Passamos portanto da mais banal das realidades ao mito, do universo físico ao universo fisiológico, do mundo exterior ao mundo interior. E o mito desenvol-

(’) Cf. Lévi-Strauss (CI.): Anthropologie Structurale, (Paris, Plon, 1958).

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vendo-se no corpo interior deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo carácter da experiência vivida, cujas condições são impostas pelo xamã favorecido pelo estado patológico e por uma técnica obsidiante apropriada.(’)

Para o xamã em questão, e para a «sua» parturiente, o útero transforma-se num universo fantástico povoado de monstros e de animais, personificando, por exemplo, as contracções. Em resumo, tudo depende da maneira como a doente e a assistência aceitam estas metáforas.

Em magia, como em poesia, o poder do Verbo (quando o oficiante e o seu público acreditam) é tal que pode remodelar o mundo. A fé move montanhas. Mas, aqui, não se trata apenas de um processo de hipnose ou mesmo de auto-hipnose. Alguns médicos ocidentais que conhecem o poder da palavra, das explicações fornecidas durante uma pequena intervenção cirúrgica, por exemplo, não nos contradirão.

O DRAMA TERAPÊUTICO

Falando um dia com Lawrence Durrell         (2) , este confessava-nos o seu pessimismo: 
«A arte transformou-se numa espécie de abstracção, numa espécie de auto-satisfação algébrica. Já não se trata de resolver, como acontecia antigamente com o teatro grego, por exemplo. Na Antiguidade, a arte era uma espécie de psicanálise, vivida colectivamente.» A função terapêutica do drama grego ou da tragicomédia shakespeariana permitia aos Antigos esconder
os seus males e os seus terrores, reconhecendo a sua grandeza ou as suas fraquezas nesses mitos heróicos representados em cena.

É interessante constatar que, ao mesmo tempo que se extingue esta arte dramática, a própria medicina toma também um outro carácter, o do ficheiro, e a sociedade vai-se dessolidarizando. Esta sociedade tornou-se de tal modo doente que decidiu retomar o caminho da terapêutica antiga, criando a psicanálise. Nesse período, encarrega os seus primeiros etnógrafos de procurar, em diferen-

C) Lévi-Strauss (CI.): Anthropologie Structurale. C) «Escritor? É uma profissão doentia.» Entrevista de L. Durrell a CI. Brulet, na revista Elle nf 1222 (Paris, Maio de 1969).

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tes sociedades, uma verdade que ela própria perdeu. Esta verdade era a capacidade de endosmose do médico com o seu doente, ou do actor com o seu público, e da qual a «transmissão» não é senão um pálido reflexo.

O xamã é ao mesmo tempo um e outro: médico e actor. Ele resolve em si mesmo as duas proposições de Diderot: o actor deve ou não participar, deve ou não transformar-se no seu personagem ... ?

No decorrer da sessão xamanística, o estado de receptividade do xamã é intenso. Ele encontra-se totalmente aberto ao Cosmos, e, sendo assim, às causas da doença e do sofrimento do seu doente. Por um lado, graças à intervenção do xamã, o doente não se sente isolado do mundo e, por outro lado, uma vez que todos os seus familiares estão presentes, tão-pouco se sente isolado do seu habitual ambiente social e afectivo.

No fenómeno do xamanismo, o drama terapêutico é uma catarse do indivíduo na qual participa, na realidade, toda a colectividade. Esta terapêutica reúne todo o sentido profundo da «festa»: Devemos talvez considerar como sobrevivências do xamanismo certos carnavais, o da Bulgária, por exemplo, onde aparecem ainda grandes máscaras emplumadas, cobertas de espelhos, de pássaros e de bonecas, ou essas festas do Nestinarstvo em que se caminha sobre o fogo.

Com efeito, o drama terapêutico representado pelo xamã aparece-nos igualmente, num plano colectivo, no grande ciclo das estações. Nesse caso a sua dança deambulatória representa o curso solar. Como no México, os seus grasnidos imploram aos deuses a chuva tão necessária à sobrevivência dos homens. A sua cogula de espelhos caça, nos Balcãs e na Anatólia, os espíritos matis que assediam os «dias sujos» do fim do Inverno.

AS MODERNAS VIAS DO XAMANISMO

Se em França ainda existe um grande entusiasmo por Freud, noutras nações ocidentais reconheceu-se em Jung, Groddeck e Reich possibilidades de chegar ainda mais longe no conhecimento do espírito humano....

Tradução de Maria Teresa Simões

Capa de Edições 70

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Fonte:http://minhateca.com.br/BethZim/DOC/Claudine+B+Rueff+-+As+Medicinas+Tradicionais+Sagradas,41512989.doc


COMENTÁRIOS IMPORTANTES



Ao contrário, não temos uma admiração ímpar pelas ciências tradicionais. Os antigos também possuíam curiosidade científica, operavam também com conjeturas e, qualquer que possa ter sido o seu sentido do simbolismo metafísico ou místico, às vezes — ou mesmo frequentemente —, enganaram-se sobre as áreas em que desejavam ter um conhecimento, não dos princípios transcendentes, mas dos fatos físicos. Em suma, é impossível negar que, no plano dos fenômenos, parte integrante, no entanto, das ciências naturais, os antigos — ou os orientais — tiveram concepções inadequadas ou as suas conclusões eram geralmente as mais ingênuas. Certamente, não os censuramos por terem acreditado que a Terra é plana e que o Sol e o firmamento giram em torno dela, uma vez que essa aparência é natural e providencial para o homem. Mas podemos censurá-los por determinadas conclusões erradas tiradas de certas aparências e com a ilusão de fazer, não simbolismo e especulação espiritual, mas ciência fenomenal ou exata, se quisermos. Entretanto, não se pode negar que a medicina aí está para curar, não para especular, e que os antigos ignoravam muitas coisas nessa área, apesar do seu grande saber em certos setores. Dito isto, estamos muito longe de contestar que a medicina tradicional tinha, e tem, a imensa vantagem de uma perspectiva que engloba o homem total; que era, e é, eficaz nos casos em que a medicina moderna é impotente; que a medicina moderna contribui para a degenerescência do gênero humano e para a superpopulação; que uma medicina absoluta não é nem possível nem desejável, e isso por razões evidentes. Mas que não venham nos dizer que a medicina tradicional é superior apenas por suas especulações cosmológicas e inexistência de determinados remédios eficazes, e que a medicina moderna, que possui esses remédios, não passa de um lamentável resíduo porque ignora as ditas especulações; ou que os médicos do Renascimento, tal como Paracelso, se enganaram ao descobrir os erros anatômicos e outros da medicina greco-árabe; ou, de maneira bem geral, que as ciências tradicionais são maravilhosas de todos os pontos de vista e que as ciências modernas, a química, por exemplo, não passam de fragmentos e de resquícios.
A sabedoria, na qualidade de ciência dos princípios universais, é o polo objetivo do conhecimento; a santidade, na qualidade de experiência do ser e não do pensamento, constitui o seu polo subjetivo.
O caráter central da tradição primordial foi a solaridade. Em um mundo não pensado enquanto matéria, mas imediatamente ressentido enquanto expressão simbólica e manifestação sensível de poderes invisíveis, o mais alto ideal era dado por este sentido de luz triunfal, irresistível e imortal, vitoriosa, — cada manhã — das trevas, luz da qual o sol representava a imagem corporal.

Orientar «solarmente», em uma constante e efetiva referência ao sobrenatural, à hierarquia dos 
seres, das metas e das formas de atividades, constituiu a essência das grandes civilizações pré-modernas — desde os Incas àChina, à Índia, à Pérsia, ao Egito Antigo, à Roma pagã ela mesma e até às últimas ressonâncias dos Santo Império Romano. Determinar em uma elite — se identificando originariamente com os senhores dos dois poderes, com aqueles em que o poder temporal real) formava um só com a ((Autoridade?, própria a naturezas imortais e não-humanas — a efetiva realização da espiritualidade solar e transcendente, era a meta de uma ciência sagrada tradicional, variada em suas expressões, mas uma em sua essência, transmitida e conservada rigorosamente através dos séculos.

Esta 
ciência 
nada tem em comum com a Religião. Na medida que possa ser difícil, para os modernos, compreendê-la, a religião — o que assim se costuma chamar no Ocidente — não é senão uma aparição relativamente tardia e verdadeiramente um produto da degeneração da espiritualidade tradicional originária.

Fontes:Julius Evola: Introdução a «Mundo Mágico dos Heróis»
http://sophia.hyperlogos.info/tiki-index.php?page=ciencia+tradicional

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